sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Sobre os sonhos

Concordo que a leitura da Interpretação dos Sonhos é essencial, mas deve-se levar em conta o objetivo de Freud com este livro. Numa conferência ele dizia que foi através da teoria dos sonhos que a psicanálise progrediu de “método psicoterapêutico para análise profunda” (Conferência XXIX, Vol. XXII). Além disso, não havia nada de similar em toda a jovem ciência, tirando a interpretação dos sonhos das crenças populares e do misticismo conferindo a esta um caráter científico (Conferência XXIX, Vol. XXII), o que era sua grande preocupação. Portanto o ato de se debruçar sobre o conteúdo onírico é, antes de tudo, um meio de se analisar o sujeito, não aquele que sonha, pois todos sonhamos, mas sim aquele que pode falar do sonho e esteja disposto a submeter este material a análise. No livro Interpretação dos Sonhos, Freud vai procurar mostrar ao jovem psicanalista que analisar os sonhos aponta para um sentido dentro da neurose, em outra conferência ele já adiantava que:
Um dia descobriu-se que os sintomas patológicos de determinados pacientes neuróticos têm um sentido (...) Acontecia que no decurso desse tratamento os pacientes, em vez de apresentar seus sintomas, apresentavam sonhos. Com isso, surgiu a suspeita de que também os sonhos teriam um sentido (...) supondo-se que todos os seres humanos fossem normais contanto que sonhassem, nós, partindo de seus sonhos, poderíamos chegar a quase todas as descobertas a que nos levou a investigação das neuroses.” (Conferência V, Vol. XV).
Entretanto, este sentido é algo que se deve chegar ao final da leitura de todo o livro sobre a Interpretação. Freud vai passar um bom tempo do livro revisando a literatura científica que trata dos sonhos, e isto leva algumas páginas do livro. Assuntos referentes aos estímulos e às fontes, o sentido moral dos sonhos, as teorias do sonhar e sua função, são tratados aqui a partir da visão de autores que abordaram estes assuntos em suas obras. Só então é que Freud passa a tratar os sonhos a partir da psicanálise, oferecendo modelos de sonhos e possíveis análises, assim como vai tecendo toda uma rede de sua nova teoria sobre a arte de interpretar os sonhos e a relevância de seu método no tratamento das neuroses. Nestes momentos podemos encontrar pontos que são fundamentais para toda a teoria psicanalítica, assim como a noção sobre a condensação e o deslocamento presentes no trabalho dos sonhos, o que mais tarde foi usado por Lacan para elaborar os conceitos de metáfora e metonímia.
Acompanhar como as técnicas da psicanálise podem ser empregadas na interpretação dos sonhos vai esclarecendo os conceitos de inconsciente, recalcamento, regressão, e outros, mas acima de tudo vai orientando ao terapeuta como este pode usar em seu consultório da mesma técnica para se chegar a um processo de análise do sujeito e com isso oferecer novas possibilidades frente à neurose daquele deitado no divã.
Freud vai retomar muitos pontos trabalhados durante a elaboração da teoria dos sonhos por toda a construção da psicanálise. Cito as conferências proferidas por Freud durante os anos de 1915 a 1917 na Universidade de Viena como exemplo. Nestas conferências temos a oportunidade de observar um outro momento da psicanálise, se em seus trabalhos e publicações Freud vai construindo toda uma teoria, durante as conferências vemos um Freud preocupado em expor suas ideias de uma forma mais condensada, mas não por isso menos importante.  Assim como relatado na Introdução do Editor Inglês das Conferências, podemos considerar que: "As Conferências Introdutórias podem ser verdadeiramente consideradas como um inventário das conceituações de Freud e da posição da psicanálise." Enquanto que as Novas Conferências Introdutórias são, como apontadas por Freud, em sua essência, suplementos. É o que podemos observar nas conferências sobre os sonhos, que não é muito mais do que um resumo da série sobre os sonhos da série anterior.
Gostaria de deixar aqui uma referência sobre algumas conferências em que Freud vai lidar com a teoria dos sonhos. Só destacando que no Volume XV, temos uma maior quantidade de conferências que tratam especificamente sobre os processos oníricos, diferente do que acontece no Volume XXII. Deixamos o Volume XVI, que constitui a Parte III das Conferências Introdutórias de fora desta busca por tratarem de outros temas, apesar de que é possível observar referências sobre a teoria dos sonhos:

Volume XV – Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Partes I e II (1916-17 [1915-17])
Conferência V – Dificuldades e abordagens iniciais
Conferência VI – Premissas e técnica de interpretação
Conferência VII – O conteúdo manifesto dos sonhos e os pensamentos oníricos latentes
Conferência VIII – Sonhos de crianças
Conferência IX – A censura dos sonhos
Conferência X – Simbolismo nos sonhos
Conferência XI – A elaboração onírica
Conferências XII – Algumas análises de amostras de sonhos
Conferência XIII – Aspectos arcaicos e infantilismo dos sonhos
Conferência XIV – Realização de desejo
Conferência XV – Incertezas e críticas

Volume XXII – Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise e outros trabalhos (1932 – 1936)
Conferência XXIX – Revisão da teoria dos sonhos
Conferência XXX – Sonhos e ocultismo

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Extraindo a pedra da loucura






"Aqui dentro não existem loucos, existem pessoas que não aguentaram a loucura do mundo aí fora."






A indicação do Bruno (que pode ser encontrado aqui. O Bruno e não a indicação) sobre o programa A Liga, exibido no dia 03 de agosto de 2010, sobre Saúde Mental fez pensar em alguns trajetos que passei no campo das psicoses.

Durante a graduação em psicologia, participava desde o 3º ano de um curso sobre Psicoses. Neste curso que possuía um enfoque psicanalítico, envolvia também as unidades de atendimento da universidade, assim havia a possibilidade de acompanhar um atendimento de um paciente psicótico. Se houvesse a inscrição de algum, claro.

Bom, desse grupo acabei atendendo uma paciente durante 4 anos que apresentava alguns delírios, porém sem um histórico de crise, ou seja, a paciente nunca passou por algum tipo de atendimento em que houvesse a necessidade de medicação. Claro que por questões éticas não vou dispor de mais detalhes do caso, contudo vou me orientar apenas pelo programa A Liga e algumas possíveis reflexões.

Logo no início do programa uma das entrevistadoras fala sobre a dificuldade em ouvir os relatos, não distinguindo o que é realidade e o que é fantasia. De certa forma, os delírios também são uma forma de realidade. O grande problema dos psicóticos é viver em um mundo neurótico. Com uma lógica de funcionamento diferente daquele em que se está inserido, tudo o que escapa do "normal" é tido como anormal, não precisamos ir longe para ligar o conceito de anormal com a loucura. Enquanto que para a neurose existe um e se, na psicose isso deixa de ser empecilho, assim as cadeias de significantes estão mais livres para fazerem associações que um neurótico torceria o nariz. Por exemplo, uma das residentes de uma casa terapêutica diz que ela não é a Izildinha, ela é a Sharon Stone, do Batman e Robin que roubaram o berço para fazer coisa errada, esse discurso é tomado pela apresentadora como uma brincadeira. Talvez seja, talvez não. Para levar essa apresentação como uma fantasia temos que considerar o e se, e se ela não for a Izildinha, também não deve ser a Sharon Stone como diz ser, afinal é bem diferente do que se vê nos filmes. Para a Izildinha (ou a Sharon Stone) a possibilidade de que ela é realmente quem diz ser deve ser levado em consideração. Não no sentido do que isto possa afetar a Sharon Stone, mas sim de que este é um discurso que pode apresentar uma realidade para alguém. No pouco tempo em que pôde falar quem era, uma história passou a surgir sobre a identificação com uma personalidade famosa tida como símbolo sexual, envolvendo um justiçeiro, um objeto que indica recém-nascidos, e a expressão de que há um erro nessa história toda, muitas interpretações tornam-se possíveis, mas daí entra o questionamento da ordem da neurose, checando a veracidade do discurso. Jura? é a frase dita pela apresentadora. Ora, quantas mulheres não desejaram um dia ser a Sharon Stone, ou outra sex symbol? Fantasiaram-se com esta ideia, se vestiram iguais, foram pra rua se achando, cruzaram as pernas da mesma forma, fantasiaram serem possuídas por um "justiçeiro", ter um filho... porém e se ela não for a Sharon Stone? Só resta voltar a ser quem ela acha que é, ou seja, aquilo que pode ser compartilhado de sua verdade com outros. Trabalha como x, ganha y, casou-se com z. Precisamos conferir com a verdade aquilo que somos, já o psicótico é mais livre para voar, nesse sentido, para ele, é. Na medida em que sua história pode ser dita, passa a existir, é a verdade daquele quem diz, sua realidade. E Freud não falou na existência de duas realidades, uma realidade de fato e uma realidade psíquica, importando muito mais a segunda do que a primeira? Experimentamos algo parecido com os delírios nos sonhos, ou até mesmo nos devaneios, mas daí perguntamos "Jura?" e tudo cai por terra, foi só um sonho.

Num outro momento do programa uma paciente explica sua bipolaridade como um pólo químico que vai puxando para um lado magnético do corpo, isso me lembrou do filme Estamira e do livro Memórias de um doente dos nervos, de Schreber (livro analisado por Freud sobre as psicoses). Para o psicótico basta esta explicação sobre o que ele é, uma das frase da Estamira é: 

"Eu sou Estamira, eu sou a beira, eu tô lá, eu tô cá, eu tô em tudo quanto é lugar, e todos dependem de mim, todos dependem de esta mira.". 

Perfeito! Mas no mundo das neuroses a bipolaridade é um transtorno de humor, caracterizado por picos de mania e depressão confirmado por um especialista, por alguém que sabe o que somos, mesmo sendo esta a primeira vez que este nos vê e, Estamira é só um nome próprio, sem poesias.

Levei um ano para conseguir ouvir minha paciente sem estes questionamentos sobre a verdade, típico da neurose. Respeitar o que ela estava falando e tomar aquilo que ouvia como uma verdade foi meu primeiro desafio. Após superar esta fase, os atendimentos passaram a progredir. Passei a compartilhar do delírio de minha paciente, isso não quer dizer que passei a apresentar alucinações também, mas sim de que agora podia ouví-la segundo o que tinha para dizer, respeitando seu discurso e conferindo certa autenticidade a este. Lacan quando atendia seus pacientes no Centre Hospitalier Sainte-Anne usava do mesmo recurso, suas seções com pacientes psicóticos eram feitas em conjunto com um grupo de pessoas que também compartilhavam do delírio. Isto conferia ao paciente uma certa organização de seus pensamentos, fazia com que seu discurso não fosse tomado como anormal, doente, louco. A convivência num mundo neurótico podia apresentar uma saída satisfatória. Numa visita que fiz ao Sainte-Anne, situado no 14e arrondissement de Paris, ouvimos o relato de que o bairro tinha uma convivência diferente com os pacientes. Por ter muitos psicóticos nas ruas, devido aos atendimentos no hospital, as pessoas das ruas, das lojas, estendiam as conversas com os desprovidos da razão, os atendiam como freguêses assim como qualquer outro, isso quebra e muito o preconceito que temos sobre a psicose. Tomamos como "O Louco", que pode fazer tudo e mais pouco a qualquer momento, sem mais nem menos, vide apresentadora antes de ir dormir no hospital. Isso também pode ser observado pela apresentadora que precisa "tomar um ar", ou seja, precisa sair daqueles discursos sem sentidos, soltos no ar, misturados a olhares estranhos, e gritos horrendos. Precisa se certificar de que a loucura que vê é de outros, não é dela, o mundo lá fora ainda continua o mesmo. Ameaça passada, notem que é a mesma apresentadora que se questiona sobre qual é o limite entre "nós que não temos transtornos" daqueles que "os tem", quando ouve falar sobre ouvir vozes e assombrações, questiona que muitos dos sem-transtornos apresentam certas crenças sobre premonições e espíritos. Mas, qual é a diferença?

Lacan entendia a psicose como um funcionamento, uma estrutura psíquica, um jeito de ser, assim como se pode ser histérico, ou obsessivo, ou narcísico também se pode ser psicótico. Durante uma entrevista uma paciente diz ter sido casada durante 5 anos, tem dois filhos, é avó, isso tudo é possível, assim como é possível ao psicótico ir ao supermercado, trabalhar, e claro, casar e criar filhos. Uma estrutura psicótica é algo bem diferente de uma crise, durante uma crise psicótica o sujeito pode ser agressivo, cometer atos dos quais pode se arrepender depois, ou não. Porém fora da crise o que fica são seus discursos "estranhos". A possibilidade de viver de um psicótico deveria ser entendida assim como para qualquer outro sujeito, independente de sua estrutura, de seu jeito de ser no mundo.

As medidas de reinserção, ou como são chamadas, de adaptação, muitas vezes são feitas dentro do ambulatório, ou hospital, sem falar que vivemos numa era em que uma pílula pode resolver qualquer problema, qualquer problema mesmo! Ao assistirem o filme Estamira, notem a diferença de quando está medicada e quando não está, verão do que estou falando. Claro que muitas medidas terapêuticas são válidas, desde que não funcionem como descritas por um paciente: como uma ocupação para não pensar besteiras. Pois em medidas de internamento esses tempos ociosos podem fazer com que se pense em fugas, tragam quadros depressivos, menos pensar em como constituir uma vida social fora das paredes, quer seja dos antigos manicômios, residências terapêuticas, ou centros de atenção psicossocial (CAPS). Se na neurose prega-se a necessidade de um tempo ocioso reservado para si, porque na psicose esse sistema serve apenas ao mal?!

Muita coisa já foi realizada no que diz respeito às psicoses, como a luta antimanicomial para acabar com os regimes de internamentos, por exemplo, mas muita coisa ainda precisa ser feita. Talvez uma das mais importantes seja mudar a escuta, não só de dentro para fora, mas também de fora para dentro, de fora dos portões para dentro da realidade dos internamentos, assim podemos nos dispor a ouvir o que a psicose têm a dizer. Citando Herbert Vianna, "o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu..."

A Liga - Saúde Mental

Estamira

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

The Hobbit - Trailer



Com estréia marcada para 14 de dezembro de 2012.
Fili, Kili, Óin, Glóin, Dwalin, Balin, Bifur, Bofur, Bombur, Dori, Nori, Ori e Thorin Escudo de Carvalho. Os trolls na floresta. Beorn. A Floresta das Trevas. A Cidade do Lago. Smaug. A Pedra Arken de Thrain...

sábado, 7 de janeiro de 2012

A transferência

Tida como elemento fundamental da cura analítica, a transferência caracteriza a relação do analisando com o analista. Constitui um processo de atualização dos desejos inconscientes: um afeto se desloca de uma representação para outra e a pessoa do analista pode ser o objeto, tomando o lugar de uma das figuras implicadas no complexo de Édipo. O sujeito é levado a repetir em sua vida, assim como no processo de análise, novas edições de tendências, de fantasmas, cuja primeira edição infantil foi recalcada.

Lacan vai dizer que a transferência é a encenação do inconsciente. É simultaneamente o motor da cura e, em sua vertente imaginária, uma resistência. A transferência põe em jogo as representações (os significantes), mas também a dimensão de um Real que torna insuficiente o termo contratransferência, designando os diversos efeitos do paciente sobre o analista, para distinguir o que se passa na cura. A transferência e a contratransferência induzem a uma concepção simétrica, por demais imaginária, do liame entre o analisando e o analista. 

As dimensões do imaginário

É o imaginário que aparece em primeiro lugar numa análise, ainda mais quando se esquece de que  toda cura é uma experiência de fala. Tudo é da ordem da captação, da ilusão, dos modos de satisfação do sujeito são de imediato apreendidos pelo registro do Imaginário. A sexualidade é eminentemente tributária desse registro. O que é analisável não deve se confundir como imaginário. Esses elementos imaginários podem ter uma dimensão simbólica estando neste registro a necessidade de notá-los para poder analisá-los. Freud forneceu o manifesto exemplo do sonho, onde as imagens devem ser lidas como um rébus (jogo que consiste em representar palavras ou frases por meio de desenhos e sinais cujo nome apresenta analogia com o que se quer dar a entender) para poderem ser decifradas - vide capítulo VI de A interpretação dos sonhos; Se nos detivermos captar por elas, não poderemos analisá-los.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A diferença entre Je e Moi


Tanto o Je quanto o Moi, termos usados por Lacan, são traduzíveis do francês por "eu", mas isto traz problemas para a clareza em português. Na tradução dos Escritos (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998), Vera Ribeiro propõe (p. 936) grafar como "je = [eu]; moi = eu". "Para distinguir na tradução em português o uso do moi e do je franceses, adotou-se solução análoga à utilizada na versão brasileira do Seminário 2 de Lacan (O EU na teoria de Freud e na técnica da psicanálise): je, sujeito do inconsciente vem grafado entre colchetes, [eu]; moi, é convencionalmente grafado, eu".

Na tradução de Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (trad. Paulo Neves, São Paulo, Companhia das Letras, 1994), escrito por Elizabeth Roudinesco, Marco Antonio Coutinho, consultor editorial da edição, escreve em nota da p. 156: "Lacan introduz a categoria do je (eu), pronome pessoal da primeira pessoa do singular, para designar o sujeito, em oposição ao moi (eu), utilizado para traduzir o Ich (eu) freudiano, comumente traduzido por ego. Como nossa opção implica traduzir moi por eu e não por ego, termo que foi adotado pelos psicanalistas de língua inglesa em detrimento da utilização dos termos coloquiais (Es, Ich e Überich) aos quais Freud se ateve, mantivemos o pronome francês je todas as vezes em que ele comparece na referência ao sujeito."


Nota de rodapé de Nícia Adan Bonatti, in Lacan, de Alain Vanier, São Paulo, Figuras do saber, 13, 2005, p. 19.

Frases soltas em psicanálise




A psicanálise é uma práxis, um método, e não uma prática que aplica uma teoria.

 
"Eu sou aquele que leu Freud", declara Lacan a Pierre Daix em 1966, por ocasião da publicação dos Escritos.

A psicanálise deve se inventar com as palavras e através dos acontecimentos históricos do momento em que é praticada. Assim, "quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época" deverá renunciar a exercê-la. Conselho dado por Lacan ao futuro psicanalista. (Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, in Escritos, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p. 322).

Segundo Lacan, não há diferença entre teoria e prática na psicanálise. Esta é uma práxis, um método. Daí a dificuldade de situá-la no meio dos conhecimentos existentes, pois não se encontra na psicanálise nem a aplicação prática de uma teoria nem um protocolo experimental reprodutível ao idêntico. Contudo, a cada vez em que se ocorre uma cura é uma aventura singular.

"A psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista." (Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, in Escritos, op. cit., p. 461).

"A arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumem suas últimas miragens. E é no discurso que se deve escandir a resolução delas." (Função e campo da fala..., in Escritos, op. cit., p. 253.

Do sintoma que é linguagem, o analista se faz decifrador.

A palavra é a morte da coisa, ou seja, é necessário que a coisa desapareça para que a palavra exista. A partir do momento em que é nomeada, ela não é mais.

"Comentar um texto é como fazer uma análise" (LACAN, Jacques. O seminário: livro 1. Os escritos técnicos de Freud, trad. Betty Milan, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1979).

O sujeito antes de falar, é falado.

Não há sujeito sem Outro, pois, como já notamos, é a partir desse Outro que o sujeito se funda.

Lacan define o signo como aquilo que representa alguma coisa para alguém, de outra forma o significante é conceituado como aquilo que representa o sujeito para um outro significante.


Não há formação do analista, mas somente formações do inconsciente.

O psicanalista só se autoriza por ele mesmo.


VANIER. Alain. Lacan; trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo, Estação Liberdade, 2005. 

a relação de objeto

Lacan (1995, pg. 10) introduz as relações de objeto partindo de alguns pontos já articulados por Freud, ao mesmo tempo em que retoma o esquema Z, antes exposto no Livro 1, Os escritos técnicos de Freud. Neste esquema, Lacan (idem, ibidem) reforça sobre a inscrição da relação do sujeito com o Outro, com um outro sujeito na medida em que este Outro é capaz de enganar, ou melhor, é através desta fala virtual pela qual o sujeito recebe do grande Outro sua própria mensagem, desta vez, sob a forma de uma palavra inconsciente. Contudo, desconhecida ao sujeito, esta fala lhe é interditada, deformada, estagnada, interceptada pela interposição da relação imaginária entre a e a’.
A última divisão dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de Freud publicado em 1905, já falava sobre o objeto, o título desta divisão é justamente “A descoberta do objeto”.  A cada vez em que se entra em jogo a noção de realidade, implicitamente está se falando sobre o objeto, de outra forma também, fala-se deste a cada vez em que é implicada a ambivalência de certas relações fundamentais, isto é, o fato de que o sujeito é objeto para um outro, que existe um certo tipo de relações em que a reciprocidade, pelo viés de um objeto, é constituinte. Segundo Lacan (idem, pg. 13), “Freud insiste no seguinte: de toda maneira, para o homem, de encontrar o objeto é, e não passa disso, a continuação de uma tendência onde se trata de um objeto perdido, de um objeto a se reencontrar.” Não estamos falando aqui do objeto típico, do objeto por excelência, harmonioso, tipicamente considerado na teoria moderna, de que vem a fundar o homem numa realidade adequada, neste caso, o objeto genital. Justamente no momento em que está pensando na teoria da revolução instintual, tal como esta se origina das primeiras experiências analíticas, Freud indica que o objeto é apreendido pela via de uma busca do objeto perdido. Este, que corresponde a um estágio avançado da maturação dos instintos, trata-se de um objeto reencontrado desde o primeiro desmame, o objeto que foi inicialmente o ponto de ligação das primeiras satisfações da criança.
Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto que em algum momento se perdeu, através da qual se exerce todo o esforço da busca. Isto de fato, cria uma discordância pela repetição. Marca a redescoberta do signo de uma repetição impossível, já que este não é o mesmo objeto perdido, nem poderia sê-lo. A primazia desta dialética instaura uma tensão fundamental no centro da relação sujeito-objeto, fazendo com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma com o que será encontrado. Em outras palavras, é através de uma busca por uma satisfação passada que o novo objeto é procurado e, quando encontrado é apreendido noutro ponto, que não aquele onde o procura.
 A relação entre o sujeito e o objeto garante uma reciprocidade entre as partes, assim como o sujeito e sua imagem no espelho. Lacan, já formulou no Estádio do espelho esta relação, no momento em que a criança reconhece sua própria imagem. Longe de conotar apenas o fenômeno que marca o desenvolvimento da criança, ilustra também o caráter de conflito da relação dual.
Ora, não é na via da consciência que o sujeito se reconhece, existe uma outra coisa, um mais-além. Centrado agora em função de um objeto, assim como um objeto ideal é literalmente impensável, numa outra perspectiva este objeto torna-se um ponto de mira, um ponto de chegada para o qual concorre toda uma série de experiências, de elementos, de noções parciais do objeto. O sujeito é caracterizado por este objeto, que serve para mascarar, enfeitar o fundo fundamental de angústia que caracteriza, nas diferentes etapas do desenvolvimento do sujeito em sua relação com o mundo. O objeto encerra o sujeito numa fortaleza, no interior da qual ele se põe ao abrigo dos medos, típicos, por exemplo, das fobias. O medo dá ao objeto seu papel, num momento determinado de uma certa crise do sujeito, não sendo por isso, nem típica nem evolutiva. Para Lacan (Idem, pg. 22) “o objeto tem uma certa função de complementação com relação a alguma coisa que se apresenta como um furo, até mesmo como um abismo da realidade.
A questão que se coloca neste momento é, justamente, determinar de qual furo está-se falando. O objeto inicialmente, se apresenta numa busca do objeto perdido. O objeto é então o objeto redescoberto, tomado ele próprio numa busca, onde não se sustenta a ideia de objeto acabado. Já se falou sobre a noção do objeto alucinado sobre um fundo de realidade angustiante, tal como Freud faz surgir do sistema primário do prazer. Oposto a isto, na prática analítica, existe a noção do objeto que se reduz ao real. Não se destaca mais sobre um fundo de angústia, mas sobre o fundo de realidade comum. Já um terceiro tema a que o objeto aparece é o da reciprocidade imaginária, em toda relação do sujeito com o objeto, o lugar do termo em relação é simultaneamente ocupado pelo sujeito.
A identificação com o objeto está no fundo de toda relação com este. Lacan (1995) chamou a isto de imperialismo da identificação, ou seja, já que um sujeito pode se identificar com outro, e o outro com este, trata-se dos dois o que o eu tem a melhor adaptação à realidade, será o melhor modelo.
 A noção de relação de objeto é impossível de compreender se não pusermos nela o falo como um elemento terceiro da relação. Seja qual for a relação imaginária, está modelada numa certa relação, efetivamente, fundamental. A relação mãe-criança é feita realmente para dar uma ideia de que se trata de uma relação real, fato a que se dirige a situação analítica. É impossível fazer intervir este elemento imaginário sem que se apresente como um ponto central da noção de relação de objeto, o que se pode chamar de falicismo da experiência analítica. Entretanto, não devemos nos apressar e reduzir esse falicismo imaginário a qualquer dado real que seja. Quando se busca a origem de toda a dialética analítica na ausência da trindade dos termos simbólico, imaginário e real, só se pode referir-se ao real. Mas, afinal o objeto é ou não o real? O que se encontra no real é o objeto?
A noção de falicismo implica por si mesma o desprendimento da categoria do imaginário. Mas, antes de se falar disso é preciso que se formule a questão do quer dizer a posição recíproca do objeto e do real. Quando se fala do real, pode-se visar coisas diferentes, em primeiro lugar, trata-se do conjunto daquilo que acontece efetivamente. Já na análise, faz-se um outro uso da noção de realidade, que é muito mais importante e nada tem a ver com o precedente. Com efeito, a realidade é posta em jogo igualmente no princípio de realidade assim como no princípio de prazer.
Lacan (1995) vai ilustrar seu pressuposto através da análise que o psicanalista inglês, Winnicott, fez sobre o que chamou de transitional object, ou transição de objeto ou então simplesmente, fenômeno transicional. Nesta noção, Winnicott observa que nos interessamos mais pela função da mãe, considerando-a decisiva na apreensão da realidade para a criança. A oposição dialética e impessoal do princípio de realidade e princípio de prazer, foi substituída por atores. “O princípio de prazer, nós o identificamos com uma certa relação de objeto, isto é, a relação com o seio materno, enquanto o princípio de realidade foi identificado por nós ao fato de que a criança deva aprender a dele se abster” (Lacan, 1995, pg. 33).
Segundo Winnicott, para que tudo corra bem, para que a criança não seja traumatizada, é preciso que a mãe opere estando sempre ali no momento necessário, vindo colocar no momento da alucinação delirante da criança, o objeto real que a satisfaz. Desta forma, a criança não tem como distinguir entre o que é da ordem da satisfação fundada na alucinação do princípio, ligada ao funcionamento primário, e a apreensão do real que a preenche e satisfaz efetivamente. Cabe à mãe ensiná-la, progressivamente, a submeter-se às frustrações e amo mesmo tempo a perceber, sob a forma de uma tensão inaugural, a diferença que existe entre a realidade e a ilusão. Nesse sentido, no interior de tal dialética é inconcebível que qualquer coisa possa se elaborar que vá além da noção de um objeto estritamente correspondente ao desejo primário. A grande diversidade dos objetos, tanto instrumentais quanto fantasiosos, que estão presentes no desejo humano, é impensável nesta dialética, ao passo em que esta se encarne em dois atores reais, a mãe e a criança. Todos os objetos dos jogos das crianças são objetos transicionais.
Seguindo esta linha de raciocínio, é a estes objetos que alguns analistas são sempre levados a procurar explicar a origem de um fato como a existência de um fetiche sexual.  São levados a buscar, pontos comuns entre o objeto na criança e o fetiche que vem ocupar o primeiro plano das exigências objetais para a satisfação sexual. Um lenço furtado à mãe, um ponta de um lençol, ou alguma parte da realidade posta acidentalmente ao alcance da criança são vistas, apesar de chamadas de transicional, não como um período intermediário, mas sim um período permanente do desenvolvimento da criança. O que se esquece nesta dialética, adverte Lacan (1995, pg. 35) é a noção da falta do objeto.
A falta do objeto não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo. Desde seu início a análise da neurose começa pela noção da castração. Acredita-se falar sempre dela como se falava no tempo de Freud. Falamos bem mais é da frustração e, há ainda um terceiro termo de que se fala, a noção de privação. Estas três coisas não são equivalentes.
Se nos referimos à privação, é na medida em que o falicismo (a exigência do falo) é o ponto principal de todo o jogo imaginário no progresso conflitual que é descrito pela análise do sujeito. É somente a propósito deste real, como uma coisa inteiramente distinta do imaginário que se pode falar em privação. Parece ser um problema maior que, um ser apresentado como uma totalidade possa sentir-se privado de algo que, por definição, ele não tem. Diz-se que a privação em sua natureza de falta, é uma falta real. Um furo.
A noção de frustração refere-se a um dano. É uma lesão, um prejuízo que, tal como temos o hábito de vê-lo se exercer, é sempre um dano imaginário. Por essência, a frustração é o domínio da reivindicação. Diz respeito a algo que é desejado e não obtido, mas que é desejado sem nenhuma referência a qualquer possibilidade de satisfação, nem de aquisição.
A castração, por sua vez, foi introduzida por Freud de uma forma absolutamente coordenada à noção da lei primordial na interdição do incesto e na estrutura do Édipo. A castração só pode se classificar na categoria da dívida simbólica.
Tem-se agora, a partir destas três definições: dívida simbólica, dano imaginário e furo, ou ausência real. A isto, deu-se o nome de três termos de referência da falta do objeto. Entretanto, o que é o objeto que falta nesses três casos? No nível da castração isto fica mais claro. Afinal, na medida em que é constituída pela dívida simbólica, a alguma coisa que sanciona a lei e que lhe dá seu suporte e seu inverso, fica claro que não se trata de um objeto real. O objeto é imaginário e isto deve fazer levantar a questão do que é o falo. O objeto da frustração em contrapartida é realmente, em sua natureza, um objeto real, por mais imaginária que a frustração seja. É sempre de um objeto real que o sujeito sente falta enquanto que, o objeto da privação não passa jamais de um objeto simbólico. Por exemplo, quando se pede um livro numa biblioteca, e é dito que este não está em seu lugar, ele pode estar bem ao lado, mas ainda assim, é faltante no seu lugar.

hipótese sobre o fantasma

Ao analisar alguns casos e suas relações com o fantasma, Calligaris (1986, pg. 18) estabelece que o fantasma fundamental que comanda a vida sexual de cada um, incluindo também os devaneios a que chamamos de fantasias, só desdobra sua eficácia com a inquietação constante de garantir o fracasso de sua atualização. No caminho da busca de um sentido, o fantasma pode exibir toda a riqueza de sua gramática, antes que o momento chegue de um ato analítico possível, um ato que confronte o sujeito com a mais simples escritura de sua montagem.
Diz-se que a linguagem é o campo do Outro, supõe-se, portanto, que há desejo no Outro.  Independentemente das intenções particulares, confessas ou inconfessadas, de qualquer indivíduo que seja, é na falação que se produz o desejo. “É num tempo logicamente segundo que um ser que será falante suporá um sujeito de um tal desejo e mesmo assim, um Sujeito Outro, que não coincide com nenhum dos outros, seus semelhantes.” (Calligaris, idem, pg. 22). Assim como aquilo que é tomado no fim de uma análise, aqui também entende-se que existe primeiro desejo na linguagem e, logo após, um desejo que se determina quando um Sujeito é suposto.  A linguagem torna-se o campo do Outro, na medida em que este Outro, isto é, um Sujeito que se supõe no desejo que se produz neste campo, aí aparece.
Para se compreender o funcionamento da linguagem, deve-se considerar um princípio mínimo que o que se enuncia espera sempre sua significação de algum outro lugar, de um enunciado a mais, e até mesmo, da linguagem em seu todo. Como sabemos não há linguagem em seu todo, assim a significação de um enunciado está sempre suspensa a um alhures que não podendo ser a totalidade acabada da cadeia dos enunciados, é sempre uma cadeia incompleta que, por sua vez, suspende sua própria significação a um terceiro enunciado ainda, e por aí vai indefinidamente.
Na psicanálise lacaniana a definição de um significante nos diz que, um significante representa um Sujeito para outro significante, representado da seguinte forma S₁ → $ → S₂. Podemos avançar através deste enunciado acrescentando que, para além de uma divisão entre um enunciado e sua significação, a existência mesma de um enunciado, sua unidade morfológica de significante (S₁), independentemente de seu sentido, só se dá para um outro significante (S₂), por retroação deste último. Um enunciado só existe, se destaca como um (S₁) dentro de uma cadeia. Se na linguagem encontramos desejo, não se deve só e simplesmente porque todo enunciado e, consequentemente todo querer está separado de sua significação, mas porque um enunciado só é um materialmente com sua separação da cadeia indefinida que o faz existir.
O desejo, resumidamente, é o efeito da divisão operando na linguagem antes que um enunciador situável dote as palavras de uma presumida intenção. Para que se possa dizer que no enunciado de um fantasma isso deseja, é porque a existência deste enunciado é comandada pela sua separação da cadeia, que o faz existir, que lhe dá existência. 
Portanto, isso deseja na linguagem, e se isso deseja não é porque falta alguma coisa. Em verdade, se alguma coisa falta na linguagem é uma última palavra que trouxesse em si mesma sua própria significação e para a qual nenhum dizer a mais seria necessário para veiculá-la. O que falta é um último significante que existiria por si só, que conteria em si mesmo a necessidade lógica de sua existência.” (Calligaris, idem, pg. 24).
Mas, o que este desejo quer daquele que deseja? Se isso deseja, cabe perguntar: o que isso quer de mim? Na medida em que o mim é a marca de uma escolha de vivente, isso me diz a respeito. Teve-se de se escolher, isso, mais do que a mim, que não seria ninguém sem isso. A escolha forçada da alienação (isso me diz respeito) impõe uma conclusão: do “eu não sou nada sem isso” para “eu não sou nada por causa disso”, inaugurando o ato de sacrifício próprio do fantasma. Este raciocínio tira seu caráter paradoxal do fato de ser articulado na primeira pessoa, como se eu pudesse produzir pensamentos. E que ele só se anuncia a posteriori, quando se é possível desmontar o fantasma já constituído, quando o lugar de onde isso deseja já tomou o corpo de um Outro, de um outro que escolhemos para servir.
Cita-se como exemplo, os tormentos de uma pessoa religiosa que considera a criatura como uma mancha para a perfeição do criador, que pode não passar de um leve deslizamento, se considerarmos que Deus pode ser um nome de um corpo que atribuímos ao lugar onde isso deseja. A alternativa que decorre do encadeamento que leva até ao “isso quer minha perda” é a do tudo ou nada. Sendo que, a criatura só existe por Deus, o que a deixa na total ignorância do mistério do querer Dele. Não tendo claro os desejos de Deus, sendo ela uma criatura, de que forma pode apagar a mancha que ela mesma constitui na perfeição do criador? Esta tarefa propõe duas alternativas: apagar a si mesmo ou transformar a mancha em uma missão para a criatura e assim preencher o desejo divino por suas obras, sem repouso, pois quem sabe o que quer este desejo?
O sujeito confrontado ao indeterminado do desejo na linguagem concebe a alternativa de apagar-se na esperança de abolir o desejo, ou novamente, determiná-lo imaginariamente para tentar preenchê-lo como a falta de um corpo. De acordo com Calligaris (1996, pg. 28), “atribui-se ao desejo um Sujeito Outro, a este Sujeito um corpo, e escolhendo este corpo uma falta, figura imaginária do desejo ao qual ele pode enfim fazer a oferenda de seu próprio corpo, na esperança de talvez preenchê-lo ao apagá-lo”.
Calligaris (1996) propõe a seguinte leitura para a fórmula do fantasma: $ ◊ a, ao Outro como desejante, ou melhor, como Sujeito atribuído ao desejo ($), cada um oferece-se como objeto (a), o símbolo ◊, destacado por Lacan como punção, marca a impossível colagem dos heterogêneos . Resolver a heterogeneidade entre um desejo indeterminado, efeito da divisão na linguagem e um corpo, não é outra coisa senão a função imaginária da castração. Esta escritura fixa o momento em que um significante faria do desejo no Outro o fato de um sujeito Outro, antes que este tome corpo, assim o objeto em oferta não se determina. O objeto é “alguma coisa”, um nada. Lacan inclui no seu catálogo de objetos parciais o nada que equivoca, pela etimologia, com alguma coisa. Não se trata de um objeto parcial como os outros, mas a posição do objeto ofertado ao desejo do Outro antes de qualquer determinação deste objeto e deste desejo, tal como uma falta imaginária sobre um corpo poderia representá-la. A castração imaginária funciona como um enunciado que preenche o papel duplo de produzir o Outro como Sujeito desejante, e de provê-lo de um corpo.
Freud já destacava nas últimas linhas de Análise Finita e Infinita um ponto instransponível pela análise, da castração. Quando um paciente fala sobre os pais, não deve apressar-se em concluir que é em relação à realidade de seus próximos que ele se situa. Este equívoco pressupõe que o Outro é o ajuntamento de alguns outros, e com isto priva-se de toda a chance de encontrar o corpo de cujo gozo é servidor. Pois para cada um deve-se procurá-lo alhures que no corpo de seus semelhantes. Encontrá-lo é fazer desde já ressoar a frase do fantasma, sendo ela o efeito ao mesmo tempo em que lhe dá figura.
É em relação a este corpo que se estabelece o catálogo dos objetos parciais de que ele pode ser imaginado amputado. Reconhecendo como objetos possíveis a voz, o olhar, seio, fezes e algumas vezes a urina, ou seja objetos destacáveis do corpo, assim como o estádio do espelho estabelece os limites. Já se quis acrescentar o suor, a respiração e também o sêmen, pois trata-se de objetos que obedecem ao mesmo critério. O corpo é escolhido como imagem de uma falta que um objeto pode preencher, mais precisamente de uma falta para gozar, sendo necessário que ele se preste para ilustrar o gozo malogrado.
Geralmente, é objeto a no fantasma todo objeto através da qual em face ao desejo do Outro o nada de ser do sujeito se determina, colando-se na figura imaginária desse desejo como falta ou amputação de um corpo que não é obrigatoriamente especular.
Na fórmula do fantasma ($ ◊ a), o losango poderia ser lido como equivalente da função imaginária da castração, ou seja, à operação que dá determinação e corpo ao desejo do Outro, permitindo a colagem com um objeto a determinado. Àquilo a que chamamos de fantasma, se formula segundo esta escritura, segundo a vontade de unir o objeto que somos ao corpo do Outro a quem ele falta, do Outro que um enunciado tornou sujeito, um enunciado onde aquele não se diz na primeira pessoa, um enunciado sem-eu. É nisto que o enunciado do fantasma será o verdadeiro operador da castração imaginária, não somente produz o Outro como Sujeito, mas também coloca a possibilidade de um saber sobre seu desejo, sendo a falta modelada segundo este suposto saber possível modela o corpo do Outro.
Sem deixar de considerar que a demanda pela linguagem que se alimenta de um corpo e de uma falta neste corpo responde a uma ordem que é a o do Nome-do-Pai, ou seja, esta demanda não ocorre sem a ajuda do que tomará um aspecto de interdição, interdição de se reunir novamente ao corpo no qual esta demanda se origina, separação instaurada pelo “não” da função paterna frente ao desejo materno. Desta forma, Calligaris (1996) permite articular a fórmula do fantasma de outra maneira: $ ◊ D. Onde indica que a função do Nome-do-Pai permite ao neurótico consistir em significante, como Sujeito ($), face à demanda do Outro (D), sendo esta demanda do Outro, a falta em um corpo.
O motivo pelo qual o fantasma não se enunciar na primeira pessoa, deve-se ao fato de que este evacua o objeto ao qual o ser do sujeito se reduziu, assim como o corpo ao qual ele se ofereceu. Sua narrativa assegura o neurótico quanto à sua consistência significante face à demanda do Outro. Em psicanálise, considerar o fantasma no sentido do discurso comum é ater-se aos limites da gramática de um roteiro que mantém o fantasma, da mesma forma que o é. Cada roteiro aparece como o atamento primeiro do objeto e do Outro. É este nó, escritura fundamental de todo o roteiro, que merece ser chamado de fantasma, ele manifesta o esforço sistemático para não se dar seguimento ao fato de que o gozo do Outro é impossível, esforço que toma a forma de uma oferenda de si mesmo como objeto ao corpo imaginário do Outro, ou para ser mais direto, à falta deste corpo. Podemos enfim constatar que, o fantasma é a relação fundamental de um ser falante com seu Outro, com a linguagem.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A mulher não existe ou A pele que habito

Prefiro não fazer algum tipo de comentário sobre o filme A pele que habito, de Almodóvar, pelo simples fato de estragar a (r)evolução para quem ainda não assistiu. Ponto. Entretanto, posso falar sobre o que o filme me fez pensar. Mas, recomendo assisitr ao filme antes!!!

Existe algo na sexuação das pessoas que não está marcado na pele, ou mais especificamente, na ordem dos genitais. Em  março de 1973, no que veio a ser chamado como Letra de Uma Carta de Amor, presente no Seminário XX - Mais ainda, Lacan escreveu a seguinte fórmula:



Chamada de Fórmula da Sexuação, Lacan vai dizer que do lado esquerdo temos o campo do Homem, onde pode-se ver duas inscrições específicas

e o lado direito onde temos 

trata-se do campo da Mulher. Na parte de cima encontramos uma proposição existencial e embaixo uma proposição universal. Em cima está o particular, é o particular que cria o universal e não o contrário como supõe a Lógica clássica.

O E invertido quer dizer existe, o x (de todas as fórmulas) é o mesmo que é lido na matemática, ou seja, em substituição para qualquer outro elemento, Φ é a letra grega maiúscula fi, que aqui representa o falo simbólico. Este falo, diz Lacan, é o significante que não tem significado, contudo produtor de significação, pois faz cadeia com outros significantes (S1  S2). O falo tem como função designar, para o sujeito, o conjunto dos efeitos de significados, isto é, a dimensão da fala. Ele foi um objeto imaginário, aquele que falta à mãe. É simbólico, como efeito do recalcamento originário, dado que se torna então o significante da castração e, ele é escolhido ao que pode aparecer de Real na relação sexual. Por fim, a barra que ora está em cima de algumas fómulas simboliza uma negação e, por fim o A invertido é o símbolo para todo, quando existe a barra de negação tem-se então um para não todo

Agora uma tentativa de leitura para esta fórmula.
, existe um x para qual a função de fi (falo simbólico) é negada. Ou seja, existe um homem para quem a lei fálica, a lei da castração, da interdição, não está inscrita. Esse é o homem que Freud tratou no texto Totem e Tabu, correspondente ao pai da horda primitiva, o único homem que gozava de todas as mulheres do bando, ficando aos demais homens a interdição às mulheres. Para que os demais pudessem ter acesso às mulheres deveriam matar seu algoz, entretanto, a liberdade em excesso acaba sendo opressiva, erguem em seu lugar um totem que lhes servirá como indicador da exogamia como regra. Esse "assassinato originário" é, para Freud, o fundamento da história e também o da religião. Já o enunciado , para todo x a função fi (falo) de x é verdadeira, trocando em miúdos, para todo sujeito a castração/interdição é verdadeira. Todo homem está submetido a impossibilidade de cometer o incesto.

As fórmulas até aqui anunciadas são complementares, sendo que uma convoca a outra o que caracteriza uma sincronicidade, se todos são iguais só o são perante um totem, o não castrado, esse último elemento pode ser substituído por algo que determina o interdito, na religião, por exemplo, Deus. Lacan usou o termo homenosum, quer dizer, ao-menos-um, ao matar o homenosum, um totem é erguido em seu lugar, ao derrubar um totem, outro surge em seu lugar.

Agora o campo oposto, a mulher. Enquanto do lado do homem temos o campo do Um, do lado da mulher situa-se o Outro. Esse outro é representado por Lacan com a letra A e uma barra que a corta. Se é barrado, é não-todo. Primeiramente a fórmula  , lê-se não existe um x que não seja função de falo de x, não existe nenhuma mulher que não esteja inscrita pela castração, ao falo. Em outras palavras, todas as mulheres, sem exceção, estão submetidas à Lei, pois no conjunto das mulheres falta aquela que seria o representante do ao-menos-um do homem, falta Uma que esteja de fora e as organize. É desta noção que surge um dos aforismos de Lacan onde diz que "as mulheres não fazem classe". Já  , quer dizer que, para não todo x existe a função do falo de x, como não existe uma mãe totêmica fora da castração, esta falta pressupõe também que não existe um sexo que não tenha como referência o falo, a mulher está, portanto, não-toda assujeitada a Lei. O falo falha em dizê-la toda, só o falo não indica exatamente o que ela é. Isto quer dizer que, apesar de toda mulher estar submetida ao falo, a mulher não está toda-inteira na função fálica.

Freud em 1931, fala que a feminilidade possui 3 formas de constituição: 1) A homossexualidade, ou a superenfatização da masculinidade. Enquanto que, no homem a existência do ao-menos-um, isso colocava os demais dentro de um grupo coeso, de uma classe, com a mulher como não existe Uma todas estão fora do conjunto, contadas uma a uma, assim no lugar da onipotência do Φ está o conjunto vazio (Ø). Desta forma, a mulher é toda Φ; 2) A mulher não está nem no conjunto vazio (Ø), nem no Φ, ao que Freud deu o nome a esta saída de abandono da sexualidade e; 3) A feminilidade, propriamente dita, é a que Lacan se aproveita para para escrever a parte inferior da fórmula da sexuação. 

Existe no esquema a letra A, esta representa o conceito de Outro, um lugar que está para além do Sujeito, lugar dos significantes, por isso confunde-se com a linguagem. A barra que atravessa o A nos diz que o Outro também é barrado, falta-lhe o Significante, o que faz Lacan usá-lo do lado da mulher e não do homem. Na parte inferior do quadro, do lado do homem, Lacan inscreve o $ e também o Φ. É isso o que suporta o significante como sujeito. Quanto ao próprio sujeito, ele é barrado devido ao significante, mas, enquanto parceiro, ele só tem a ver com o objeto a, por sua vez inscrito no lado da mulher.

Do vemos partir duas setas, uma em direção ao  que, de certa forma, remete ao conjunto vazio (Ø), representa o buraco impreenxível pelo que quer que seja. Não existe o Outro do Outro, e temos aqui outro aforismo lacaniano que diz o seguinte, mulher não existe. Isto quer dizer que não há um significante que diga o que é a mulher e quando ela em seu próprio campo pergunta WAS WILL DAS WEIB (O que quer a mulher)? só pode encontrar o vazio, o homem diante da mesma questão encontra aquele que está no lugar do totem.

A outra seta, que aponta para o Φ, pois não há x que não seja função de x, caminha para a via fálica. não se liga a a, O grande Outro não se liga a um pequeno outro, assim como $ não se liga ao falo (Φ). Simular, no sentido de representar em sua maneira de ser, o homem é a posição da histérica. Partindo da inexistência da mulher, que consiste em considerar as mulheres uma a uma, sem que por isso elas constituam um conjunto finito, a partir de então as mulheres encontram-se numa posição desdobrada. Deste A barrado partem duas flechas: uma que indica faltar no Outro esse significante que poderia organizar o conjunto das mulheres, e outra que marca uma relação com a função fálica inscrita no lado homem. Assim, a mulher é dividida, em sua sexualidade, entre esses dois significantes, é dividida em seu gozo. Todos estes três termos ,e a, se prestam para falar disto que não se escreve, deste problema que temos no inconsciente com o dizer, com a impossibilidade de dizer, de escrever um tipo de significação.

O fato de Lacan dizer que o ato sexual não existe (outro aforismo!), lembrando de que não estamos falando aqui da relação dos corpos, não é uma questão de corpos, mas de significantes, significa dizer que, toda vez que um homem tenta atingir sua parceira seuxal, ou seja, o Outro sexo por excelência, só o consegue fazer montando seu fantasma ($ ◊ a), relegando sua amada à condição de ser causa de seu desejo. Cada um só vai encontrar o outro através de seu próprio fantasma. Isto explica o fato das mulheres serem tão suscetíveis a elogios, pois desse a (objeto pequeno a) a mulher não tem acesso (Ⱥ não se liga a a), só quando é investida por um homem, de ser sua mulher quando na verdade é uma-mulher-entre-outras.

Estas explicações tem um maior efeito para aqueles que assistiram ao filme, pois quando Almodóvar sustenta que a mulher não existe, diz que mesmo sendo possível habitar uma mulher, não é algo que possa ser feito ao pé da letra. A homossexualidade masculina é de outra ordem, que um homem sinta atração sexual por outro homem, de modo algum isto o torna mulher, mas não é este o nosso caso. O homem busca na mulher aquilo que relaciona-se com seus objetos, com seus desejos, enquadra-se nesta relação. Mas de modo algum será a mulher. Para isto teria que responder a velha questão: o que quer a mulher? e daí cairia num fundo sem poço.

Referência Bibliográfica:
GERBASE, Jairo. A hipótese de Lacan sobre A mulher. Disponível em http://www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca/conferencia_Gerbase_revisao_JG.pdf, último acesso em 05 de janeiro de 2012. 

LACAN, Jacques. O Seminário XX, Mais, Ainda, Jorge Zahar Editor, RJ-1996.

RODRIGUES, Pedro L. de L. Fórmulas da sexuação. Disponível em veredas.traco-freudiano.org/veredas-8/txt-pedro.doc, último acesso em 05 de janeiro de 2012.

VANIER, Alain. Lacan; trad. Nícia Adan Bonatti. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. (Figuras do saber; 13).

VOLACO, Gustavo C. A derrisão da esfera ou a relação sexual não existe. Disponível em http://www.letra-psicanalise.com/index.php?option=com_content&view=article&id=163:a-derrisao-da-esfera-ou-a-relacao-sexual-nao-existe&catid=75:gustavo-capobianco-volaco&Itemid=148, último acesso em 05 de janeiro de 2012.