sábado, 7 de abril de 2012

Sublimação no octógono

"Sublimação: processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Freud descreveu como atividade de sublimação principalmente a atividade artística e a investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo objetivo não sexual e em que visa objetos socialmente valorizados."

É assim que Jean Laplanche define a sublimação em seu Vocabulário da Psicanálise (2001, p. 495). O conceito freudiano evoca ao mesmo tempo o termo "sublime", usado para designar uma produção que sugira a grandeza em uma obra de arte, assim como o termo "sublimação" utilizado na química para referir ao processo que faz um corpo passar do estado sólido para o estado gasoso.

Freud dizia que a pulsão sexual põe à disposição do trabalho cultural grandes quantidades de forças deslocando suas metas sem, contudo, perder sua intensidade. Mas este processo não está muito bem delimitado, por exemplo, deverá incluir-se na sublimação o conjunto do trabalho de pensamento ou apenas certas formas de criação intelectual? O fato das atividades sublimadas serem numa determinada cultura objeto de uma valorização social especial deverá ser considerado uma característica primordial, ou esta engloba também algumas atividades adaptativas como o trabalho ou o ócio? Nas Novas Conferências Introdutórias, 1932, Freud articula que a mudança que se supõe intervir no processo pulsional diz respeito à meta, ou simultaneamente, à meta e ao objeto da pulsão. "Designamos por sublimação uma certa espécie de modificação da meta e mudança de objeto em que entra em consideração a nossa avaliação social".

O ponto que queremos chegar é se o trabalho econômico da sublimação pode ser aplicado a atividades outras, como o MMA (mixed martial arts), por exemplo. Sabe-se que neste tipo de artes marciais inclui tanto golpes de combate em pé assim como técnicas de luta no chão. Uma espécie de vale-tudo, mas que não é tomado ao pé-da-letra. Há regras. Mas como podemos relacionar a sublimação e a execução de um esporte "violento" (as aspas são para os adeptos do esporte)?

Bom, voltemos à psicanálise. No trabalho intitulado de A Pulsão e suas Vicissitudes, de 1915, Freud compara a pulsão a um estímulo fisiológico, ou seja, baseando-se no arco reflexo, segundo o qual um estímulo vindo do exterior atinge um tecido vivo e é novamente reconduzido para o exterior por meio de uma ação. A questão aqui é que esta ação deva retirar do tecido a influência do estímulo. Nesse sentido a pulsão seria um estímulo psíquico. Freud adverte que existem para o psíquico outros estímulos que se comportam muito mais parecidos como o estímulo fisiológico. O estímulo pulsional não vem do mundo externo, mas do próprio interior do organismo, assim age diferentemente do psíquico e requer outras ações para eliminá-lo. 

Vou tentar usar um outro ponto para explicar o funcionamento psíquico. Freud escreve no Projeto para uma psicologia científica (1895) que, "uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a 'memória'." Esta consideração reformulou o funcionamento da memória em conjunto com o aparelho psíquico. Falando em memória, você se lembra deste dia?



O fato de poder acessar a memória facilmente, incluindo o lugar onde estávamos neste exato momento, nos faz pensar que o aparelho da memória seja algo da ordem da consciência, certo? Errado.

No texto “Regressão”, do Capítulo VII, A psicologia dos processos oníricos, encontrado na segunda parte da Interpretação dos sonhos (1996, p. 564 a 579), temos um desenho de um aparelho que aponta para uma direção, indo da extremidade perceptiva para a extremidade motora, assim:


Este aparelho segue a mesma ideia do aparelho reflexo que anunciamos anteriormente, ou seja, dado um estímulo qualquer este entra no organismo por um lado (Pcpt) e tem uma saída como resposta (M). Freud nos diz que há um sistema logo na parte frontal do aparelho que recebe os estímulos receptivos, mas não preserva nenhum traço deles, e portanto, não tem memória. Já por trás dele há um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas do primeiro em traços permanentes. Isso explica que quando lhe foi dado o estímulo sobre o 11 de setembro de 2001, logo você foi capaz de acessar o aparelho mnêmico. Não há apenas um, mas diversos elementos mnêmicos (Mnem), nos quais uma única excitação, deixa fixada uma variedade de registros diferentes. 

Nossas lembranças, diz Freud, são inconscientes por si mesmas. Podem tornar-se conscientes, mas podem produzir todos os seus efeitos quando em estado inconsciente. Àquilo que descrevemos como nosso "caráter" baseia-se nos traços mnêmicos de nossas impressões, além disso, as impressões que maior efeito causaram em nós - as de nossa primeira infância - são as que nunca se tornam conscientes. Quando Freud analisava os processos oníricos isso o levou a pensar na outra extremidade do aparelho, ou seja, é na extremidade motora do aparelho que deve situar-se o sistema crítico. 


O último sistema do aparelho é o pré-consciente (Pcs), os processos excitatórios nele ocorridos podem penetrar na consciência sem maiores empecilhos, desde que certas condições sejam satisfeitas, como por exemplo, que eles atinjam certo grau de intensidade, que a atenção esteja distribuída de uma certa maneira, etc. Este é o sistema que detém a chave do movimento voluntário. Pode-se entender que estamos sujeitos a todo tipo de estímulo, uma vez que na extremidade perceptiva não há um sistema crítico que barre a entrada de novos estímulos. A mesma ideia segue para os traços mnêmicos, é possível que sejamos capazes de armazenar qualquer informação, porém o fato de nos lembrarmos de algumas e de outras não, nos sugere que deve existir um mecanismo que faça com que algumas informações sejam selecionadas. A coisa começa a fazer mais sentido (outros dirão que não) quando o estímulo que passou pelos sistemas mnêmicos adentram no inconsciente. Freud descreveu na Interpretação dos Sonhos, os mecanismos de condensação e deslocamento, que mais tarde Lacan chamou de metáfora e metonímia, estes mecanismos trabalham para que os estímulos possam através de cadeias associativas saírem para a consciência sem maiores problemas. Assim, um estímulo qualquer que adentra através do aparelho perceptivo pode sair pela consciência como uma grande gargalhada, por exemplo. Compreender este processo já é meio caminho andado.

O que conhecemos por pulsão se encontra dentro deste aparelho descrito por Freud. Há no estímulo pulsional uma satisfação, no sentido de que o estímulo segue uma direção e tende a descarga. Até aqui pudemos perceber dois termos referentes à pulsão: sua pressão (Drang), ou a força propulsora natural de todo estímulo e, sua finalidade (Ziel) que só pode ser obtida eliminando-se o estado de estimulação na fonte da pulsão. Faltam ainda seu objeto (Objekt) e sua fonte (Quelle).

O objeto de uma pulsão é a coisa em relação à qual a pulsão pode atingir sua finalidade. É o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente não está ligado à ela, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. Com relação a fonte, só podemos estar falando de algo da ordem do sexual. Freud aponta que as pulsões podem passar pelas seguintes vicissitudes:
Reversão a seu oposto;
Retorno ao próprio eu do indivíduo;
Repressão e;
Sublimação;

Só agora podemos chegar a propor alguma análise. Pode-se começar este trabalho usando um que o próprio Freud analisou. O texto de 1910 intitulado de Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, traz um bom exemplo que inclui a sublimação como saída para a pulsão sexual. Nos primeiros momentos do texto, Freud faz um levantamento da vida de Leonardo, o que chama a atenção é a falta de relacionamentos amorosos na vida do artista. "No seu caso parece que foi isso o que realmente sucedeu. Seus afetos eram controlados e submetidos ao instinto da pesquisa; ele não amava nem odiava, porém se perguntava acerca da origem e do significado daquilo que deveria amar ou odiar. Parecia, assim, forçosamente, indiferente ao bem e ao mal, ao belo e ao horrível. Durante esse trabalho de pesquisa, o amor e o ódio se despiam de suas formas positivas ou negativas e ambos se transformavam apenas em objeto de interesse intelectual." Não nos parece que Leonardo era insensível à paixão, o que acontecia era converter sua paixão em sede de conhecimento e belas obras de arte.

Freud relata que a observação da vida cotidiana das pessoas revela que a maioria conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes da pulsão sexual para sua atividade profissional. Este é o trabalho da sublimação, que tem a capacidade de substituir seu objetivo imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser mais valorizados. Aceitamos este processo como verdadeiro sempre que na história da infância de uma pessoa - isto é, na história de seu desenvolvimento psíquico - evidenciamos que, na infância, esse instinto foi usado para satisfazer interesses sexuais. Durante a infância, muitas crianças descarregavam suas pulsões contra outras crianças de maneira agressiva, através das mordidas, por exemplo. Com o passar dos anos este tipo de descarga vai sendo limitado, não podemos mais morder a vendedora de uma loja só porque o preço do produto está maior do que o esperado. 

Uma das regras do MMA é que os lutadores que não demonstrarem agressividade, a luta deve ser reiniciada. Uma possibilidade de que a agressividade desferida nos golpes seja um destino de uma pulsão, é verdadeira, porém não podemos falar de sublimação, mas sim de catarse. Assim como acontecia nas tragédias do teatro grego, quando assistimos a um filme ou jogando videogame. Contudo, devemos levar em conta de que estamos falando de uma agressividade contida, regrada. Aliás outra regra demonstra que os ataques não são mais algo do infantil: é proibido cabeçada, dedo no olho, morder, puxar cabelo, beliscar, arranhar e cuspir no adversário. 

Bom, mas quando um lutador de MMA pode ter feito uso da sublimação? Vamos pensar no esquema do aparelho psíquico proposto por Freud. Se um estímulo, como uma surra na infância, por exemplo, entra no sujeito pelo aparelho perceptivo, passando pelos traços mnêmicos, isso faz com que algo desta surra fique marcado na memória. Ao passar pelo inconsciente e sofrendo os efeitos da condensação pode ganhar uma significação desde "eu levei uma surra" até "quero um bolo de chocolate". O fato é que outras surras durante a vida do sujeito pode remetê-lo à surra ocorrida na infância. Se, a resposta da criança após a surra foi bater em outras crianças, quando adulto ao levar outra surra sua resposta pode ser bater na esposa, por exemplo. Ao invés disso, caso a resposta do sujeito for se tornar um importante cientista empenhado na cura do câncer ou um grande artista, aí sim, poderíamos pensar no uso da sublimação.

O que aconteceu com Leonardo da Vinci, ou seja, a ausência de relacionamentos sexuais e a direção de suas pulsões para o campo da ciência assim como da arte, é claro para nós e isso nos serve de modelo. Mas, não podemos esperar que todos os outros sejam capazes de tal façanha. É preciso considerar outras escalas em que a sublimação ocorra, sem chegar a algo tão grandioso como o caso de da Vinci. 

Vamos pensar no esquema do aparelho psíquico novamente, mas desta vez acrescentando alguns pontos levantados por Lacan. Este articulou que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. O significante "surra" pode não referir-se apenas ao real da agressão física, mas ganhar outras considerações como "apanhar da vida". Assim, da mesma forma o sujeito pode considerar levar uma surra ao passar por condições de vida adversas. Segue um exemplo, o caso de uma garota de 16 anos que manifesta o desejo de se tornar assistente social. Esta garota sofreu muito cedo à morte dos pais, ficando aos cuidados da avó que também veio a falecer, mora atualmente num abrigo e vem se dedicando a cursos técnicos que trabalham com legislações. Não é algo tão grandioso como o caso do Leonardo da Vinci, mas também podemos perceber os mecanismos da sublimação aqui. Da mesma forma, um sujeito que "apanhou" muito na vida, pode vir a dedicar suas pulsões na delinquência, ou de outra forma, tornar-se um campeão "batendo" muito. 

O que é consciente ou inconsciente para o sujeito? Talvez seja claro seus objetivos, ou o fato de que deseje ser um lutador, e até mesmo seja claro sua história de vida que o levou até ali, porém os mecanismos envolvidos, as pulsões, quais conteúdos estão condensados, entre outros mecanismos, isto é inconsciente ao sujeito. Também devemos considerar que para este mesmo sujeito, se a sublimação não fosse uma possibilidade - econômica como diria Freud - da pulsão, poderíamos vislumbrar algo que a medicina viria a considerar como um transtorno ou algum outro tipo de adoecimento psíquico. Esta seria uma outra saída para o sujeito.

Mais uma dúvida. Como isto tudo não pode ser considerado como uma outra vicissitude da pulsão, como a reversão a seu oposto? Freud usou o exemplo deste tipo de vicissitude através da transformação da atividade em passividade (olhar em ser olhado) e na transformação em seu contrário, como é o caso do amor que dá lugar ao desamor. O que diferencia aqui é o contexto, ou relevância social do destino da pulsão, o fato de que o significante "bater" possa ser usado num esporte em que existam regras, e que, no momento atual tenham grande relevância social como o MMA, também pode se referir aos mecanismos de sublimação. "Designamos por sublimação uma certa espécie de modificação da meta e mudança de objeto em que entra em consideração a nossa avaliação social."


Referencial:
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1950[1895]). In: Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos, Vol. I. (1886 - 1899). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.

_______________. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910). In: Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos, Vol. XI (1910[1909]). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.

_______________. A pulsão e suas vicissitudes (1915). In: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos, Vol. XIV (1914 - 1916). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.

_______________. Novas conferência introdutórias sobre psicanálise (1933[1932]). In: Novas conferências introdutórias e outros trabalhos, Vol. XXII (1932 - 1936). Disponível em http://www.mediafire.com/?k468m09mnfg.  

_______________. A interpretação dos sonhos (Primeira parte). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. IV; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_______________. A interpretação dos sonhos (Segunda parte) e sobre os sonhos. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, Vol. V; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis; sob a direção de Daniel Laplanche; tradução Pedro Tamen - 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

2 comentários:

  1. Paulo, mais um texto-aula. Se você me permitir(e se não permitir tbm, postarei no facebook da pós). Parabéns! PS. achei 2 palavras com grafia incorreta... ato falho detected, "aritsta" e "psíqjuico" conte me mais sobre isso... rs

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    1. Pode postar, Brunão! Agradeço a força... Quanto aos atos falhos, acho que vc se enganou... rsrs

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