terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A (re)descoberta de si em Alan Wake. Ou sobre a superficialidade da escrita e o que isso implica.




Este texto está livre de SPOILER.

Alan Wake é um game de ação em terceira pessoa, que apresenta ainda uma perspectiva de survival horror, ou seja, o objetivo é sobreviver aos estranhos acontecimentos. Desenvolvido pela Remedy Entertainment e distribuído pela Microsoft Game Studios, foi lançado oficialmente em 2010 para Xbox e a versão para PC chegou só em 2012.

Alan Wake é um escritor de livros de terror que vive um momento delicado de sua carreira e também de sua vida. Alan está há algum tempo sem conseguir produzir outro livro e sua esposa, Alice, decide levá-lo para Bright Falls, uma pequena cidade em meio às montanhas, para passar umas férias. Alan descobre que Alice o levou até lá para que ele pudesse "recuperar sua criatividade", nervoso com a atitude da esposa decide dar uma volta fora da cabana. Em seguida, ouve o pedido de socorro de Alice e quando retorna vê sua esposa sendo levada pela escuridão.

A partir daqui a história se inicia com uma total desordem no enredo: Alan acorda em meio a um acidente de carro; Alice está desaparecida há uma semana; Alan não tem a menor ideia do que se passou nesta última semana; precisa voltar para Bright Falls e procurar Alice; é perseguido por homens (e objetos) possuídos pela escuridão. A maior parte do enredo do game é vivido à noite, isso significa lugares escuros, sombrios, com muita névoa e cheio de suspense.

Durante o desenrolar do jogo, Alan vai encontrando páginas do que parece ser um livro (manuscrito) com textos escritos pelo próprio Alan (da qual ele não se lembra de ter escrito aquilo) e que vão contando, de modo difuso, os acontecimentos do jogo. E, é neste ponto em que queremos nos deter.

É notável a dificuldade de muitas pessoas ao se dedicarem a uma atividade escrita que seja maior que um "post", visto que o verbo postar atualmente parece comportar uma certa economia de palavras além de manter-se na superficialidade das coisas. Escritas que sejam mais longas ou mais aprofundadas, que demandam maior tempo e dedicação do escritor são exorcizadas.
Alan Wake tem dificuldades em reconhecer as páginas do manuscrito como uma produção sua, da mesma forma as pessoas têm apresentado a mesma dificuldade em se reconhecer naquilo que escrevem. Um reflexo disto pode ser observado através dos "compartilhamentos" presentes nas redes sociais onde muitas (e muitas) vezes são imagens com textos prontos inseridos. Exemplo:


Imagem tirada da timeline do Facebook.


Sem entrar no mérito de tais mensagens: em muitas ocasiões nos servem perfeitamente. Entretanto, temos que considerar que, ao menos uma pessoa se dispôs a construir tal mensagem. Esta pessoa juntou em algumas poucas palavras um sentimento, um momento, uma experiência, uma mensagem a ser passada adiante. Quando se reproduz esta mensagem, de alguma forma, estamos compartilhando (termo usado na rede social) deste sentimento, momento, experiência... Porém, será que podemos diferenciar a primeira pessoa que se propôs a escrever a mensagem daqueles que vão compartilhá-la?! Sim, e em vários sentidos! Se aqueles que compartilham do sentimento por que não escreveram o que estavam sentido, mas usaram de algo escrito por outros? Seria uma questão estética, apenas? Seria falta de habilidade/criatividade digital (em inserir textos em imagens)? Ou será que só passaram a viver o sentimento a partir do momento em que viram a mensagem pronta, daí compartilharam? Como já foi dito, não queremos entrar no mérito de tais mensagens.

Nem todos tem o dom, a aptidão, o talento, o rebolado (chame como quiser) de colocar em palavras seus sentimentos. Fato! Mas há ainda uma parcela de pessoas, e PODE SER QUE este número vêm aumentando cada vez mais, que já não usam a escrita para, a partir dela, poder se (re)conhecer. Também não pretendemos nos deter no sistema educacional, mas já adianta-se que este é um ponto importante a ser considerado. Só para se ter uma ideia, pesquisas apontam que 38% dos estudantes do Ensino Superior no País "não dominam habilidades básicas de leitura e escrita" (cf. Todos pela Educação). Queremos expor aqui dois outros pontos: a) o papel do mass media em controlar sentidos e sentimentos e; b) retomar a função-autor, tal como propõe Foucault.


A Cultura de Massa


O termo "cultura de massa" trata-se de um jargão, um conceito genérico, desta forma, precisamos contextualizá-lo um pouco. Se optarmos por um ponto de vista um pouco mais pessimista, diríamos que a cultura é um fato aristocrático e, a cultura de massa é a anticultura, nascendo justamente num momento histórico em que a presença das massas é o fenômeno mais evidente. É o sinal de uma queda irrecuperável, ante a qual o homem de cultura é testemunho. Caso optarmos por uma visão mais otimista, pode-se dizer que a televisão, o rádio, o jornal, a revista, o cinema, e ainda mais a internet, colocam os bens culturais à disposição de todos, proliferação de uma dita cultura "popular" (ECO, 1976:08-9). De um lado temos uma leitura de textos SOBRE a cultura de massa e, de outro lado a integração se dá a partir da leitura dos textos DA cultura de massa.

Felizes ou não, o universo das comunicações de massa é o nosso universo. Se quisermos falar de valores, as condições das comunicações são as fornecidas pelos jornais, revistas, TV, internet... Como faz Eco (1976:11-12), ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso que, indignado com a natureza inumana desse universo, vai transmitir o seu protesto através dos canais de comunicação de massa. Tais informações são produzidas por uma indústria cultural numa estranha relação de palavras: emparelhando a ideia de cultura que implica um privado e sutil contato de sujeitos com a de indústria que evoca linhas de montagem e produção em série.

As imagens serviram num dado momento histórico para criar significados sacros (ECO, 1976:240), sustentando um repertório simbólico institucionalizado (típico da primeira cristandade e da cristandade medieval). Tal repertório permite transferir conceitos de uma religião revelada para uma série de imagens, servindo-se delas novamente para transmitir os dados conceituais de origem de forma que pudessem ser apreendidos também pelos simples, privados de certos saberes teológicos. Esse processo de mitificação era algo que partia de cima, codificado e decidido por homens da Igreja apoiados por séculos de hermenêutica bíblica. Não podemos deixar de considerar que os artistas que criavam tais imagens colhiam referências de baixo também, baseando-se no valor icônico de certas imagens e emprestando-lhes toda uma tradição mitológica de elementos da fantasia popular, situações psicológicas, morais, sobrenaturais. Por vezes, tais identificações simbólicas passavam a fazer parte da sensibilidade popular de modo tão profundo que se tornou difícil discriminar o que era "dirigido" e o que era "espontâneo".

Mas, eis que alguém inventa a possibilidade de imprimir xilograficamente as santas palavras numa bíblia reproduzível em muitos exemplares e temos aí algo novo. Além de atingir um número maior de pessoas à um preço acessível para as massas, a natureza do produto também precisou sofrer modificações: o desenho adaptar-se-á à compreensão de uma audiência mais vasta, porém menos letrada. Daí, vem Gutemberg e a invenção dos tipos móveis possibilitando o nascimento dos livros. Tempos vão passar até que os meios de massa vão adotar a mesma estratégia, ou seja, a adequação do gosto e da linguagem de acordo com as capacidades do público a ser atingido (a terminologia bélica também não é ao acaso). As mídias, criando um público, produz leitores, ouvintes, espectadores, que por sua vez, as condicionarão.

Se nas paredes rústicas o bisonte desenhado se identificava com o bisonte real, garantindo ao pintor a posse do animal através da posse da imagem, hoje esta mesma relação faz com que os símbolos de status acabem por identificar-se com o próprio status, por exemplo. No século XVI, os livreiros ambulantes e saltimbancos vão encomendar toda uma sorte de produtos editados por tipografias menores para serem vendidos nas feiras e praças. Epopeias cavalheirescas, queixas sobre fatos políticos, ocorrências diárias e anedotas aparecem mal impressas, sem mencionar local e data, pois já possuem a primeira característica dos produtos de massa: a efemeridade (ECO, 1976:12-13). Um automóvel não torna-se um símbolo de status por mera tendência mitificante (que parte inconscientemente das massas), mas sim porque a sensibilidade dessas massas é instruída, dirigida e provocada pela ação de uma sociedade industrial baseada na produção e no consumo, não só acelerado, mas também obrigatório. De acordo com Eco (1976:243), no objeto, visto inicialmente como manifestação da própria personalidade, o que vem a ser produzido é a própria anulação da personalidade.

A indústria cultural surge, portanto, como um sistema de condicionamentos aos quais os "operadores de cultura" deverão prestar contas, caso queira comunicar-se com seus semelhantes. Tomemos o jornal como exemplo, a relação entre condicionamento externo e fato cultural é aqui mais evidente: um jornal é um produto formado de um número fixo de páginas, saindo uma vez por dia, na qual as coisas ditas não serão mais unicamente determinadas pelas coisas a dizer, mas sim que uma vez por dia se deverá dizer o tanto necessário para preencher tanto número de páginas. A situação que chamamos de cultura de massa, e que posteriormente será interpelada por comunicações de massa, mass media ou meios de massa, se dá a partir do momento histórico em que as massas ingressam como protagonistas na vida compartilhada, corresponsáveis pela coisa pública (ECO, 1976:24).

Pode-se dizer que os mass media: 
- tendem a secundar o gosto existente, não promovendo renovações da sensibilidade;
- narra, muitas vezes de modo dramático e conturbado, o já acontecido; 
- representam uma emoção, mas ao invés de sugeri-la entregam-na já confeccionada; 
- uma vez dentro de um circuito comercial, fica sujeito às leis da oferta e da procura, isso quer dizer que dão ao público somente o que ele quer, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerindo ao público o que este deve desejar; 
- tendem a difundir produtos que exigem pouco esforço do consumidor, o pensamento é resumido em "fórmulas"; 
- acabam com isso encorajando uma visão passiva e acrítica do mundo, desencoraja-se o esforço pessoal pela posse de uma nova experiência; 
- quando voltados unicamente ao entretenimento, empenham-se para atingir o nível superficial de nossa atenção; impõem símbolos e mitos de fácil universalidade criando "tipos" prontamente reconhecíveis reduzindo assim a individualidade; 
- trabalham com opiniões comuns, reafirmando o que já sabemos, estabelecendo uma visão social conservadora. 

Os mass media apresentam-se como instrumento educativo típico de uma sociedade capitalista de fundo paternalista, porém com uma superficialidade individualista e democrática, para fins de controle e planificação das consciências. Mascaram essa função classista manifestando um aspecto positivo da cultura de uma sociedade do bem-estar onde todos possuem as mesmas oportunidades de acesso, em condições de perfeita igualdade (ECO, 1976:40-3).

Veja que, em alguns momentos, os meios de massa se distanciam do que foi antes uma tradição romanesca, onde era-se oferecida uma narrativa em que o interesse do espectador era deslocado para a imprevisibilidade e portanto, para a invenção do enredo que viria num primeiro plano. O acontecimento não ocorreu antes da narrativa, ocorre enquanto se narra. Nas narrativas modernas, a personagem encarna uma exigência universal e deve, em certa medida, ser previsível.

Para encerrar este capítulo, citamos Sócrates e o mito de Teut: "estás diposto a crer que ele (os discursos) falem como seres pensantes; mas onde quer que os interrogues, querendo aprender, não te respondem mais que uma só coisa, e sempre a mesma" (ECO, 1976:34). 


A relação do sujeito com a autoria


Uma forma de rarefação do discurso, de acordo com M. Foucault (2006:26), está no jogo com o autor. Não entendendo autor como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.

Há muitos discursos que circulam sem receber uma autoria, como as conversas cotidianas, decretos ou contratos que precisam de signatário, mas não de autor. Entretanto, diferentemente, o autor não desempenha o mesmo papel nos domínios em que uma atribuição ao autor é regra: a literatura, a filosofia e a ciência. Na ordem do discurso científico, na Idade Média, por exemplo, a atribuição a um autor era indispensável, pois era um indicador de verdade. Desde o século XVIII, esta função não parou de enfraquecer no discurso científico. O autor só funciona para dar nome a um teorema, um efeito ou uma síndrome. Enquanto que, no discurso literário a função do autor não cessou de se reforçar. Todas as narrativas, poemas, dramas ou comédias, que antes circulavam livres na Idade Média, agora exige-se saber quem é o autor, que revele o sentido oculto que o atravessa, que articule com sua vida pessoal e experiências vividas.

O sujeito que escreve e inventa um texto retoma por sua conta a função do autor. O comentário limitava o acaso do discurso através do jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e da mesmice. O princípio do autor limita o acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu.

A autoria é abordada aqui como uma função do sujeito. A função-autor, função discursiva do sujeito, estabelece-se ao lado de outras funções enunciativas, que são o locutor e o enunciador. O locutor, segundo Eni Orlandi (2012:74) é aquele que se apresenta como "eu" no discurso e o enunciador é a perspectiva que esse "eu" constrói. A noção de autor implica no processo de individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, da filosofia e também da ciência (FOUCAULT, 1992:33). Neste sentido, a escrita é um jogo ordenado de signos que se deve mais à própria natureza do significante do que ao seu conteúdo significativo.

A função-autor, "[...] não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários 'eus' em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar" (FOUCAULT, 1992:56).

Embora a escrita esteja regulamentada numa certa ordenação, está também sempre a ser experimentada nos seus limites. Não se trata da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem, mas antes se trata da abertura de um espaço onde o sujeito vem a desaparecer. Se tomarmos como exemplo a narrativa dos gregos, percebemos que estas destinavam-se a perpetuar a imortalidade do herói, a narrativa salvava a aceitação da morte do herói. Distintamente, a narrativa árabe apresentava como tema e pretexto o adiamento da morte. Contavam-se histórias até de madrugada para evitar o momento em que o narrador se calaria. Atualmente, a cultura metamorfoseou este tema da narrativa ou da escrita que agora são destinadas a conjurar a morte, ao sacrifício da própria vida. De acordo com Foucault (1992:36), "a obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor", manifestando-se também no apagamento dos caracteres individuais do sujeito que se dispõe a escrever.

Se questionarmos a escrita em suas manifestações com o autor, em que momento se torna uma obra? Usando as publicações de Nietzsche como exemplo, onde se deve parar? Será necessário publicar tudo? Mas o que vem a ser este “tudo”? Como definir uma obra dentre os vestígios deixados por alguém após sua morte? A palavra obra e a unidade designada por esta palavra são provavelmente tão problemáticas como a individualidade do autor. O nome de um autor é um nome próprio, que apresenta, além da função de indicação, o equivalente a uma descrição, uma designação. Um nome de um autor não transita, portanto, como um nome próprio, permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-los e opô-los a outros textos. Seguindo este raciocínio foucaultiano (1992:45), o fato de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” indica que este discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. O nome do autor não está situado no estado civil dos homens nem na ficção da obra, mas na ruptura instaurada por um grupo de discursos e o seu modo de ser singular.

O que se percebe é que uma quantidade de discursos em nossa cultura são providos da função-autor e outros, desprovidos. Uma carta privada, um texto anônimo, pode ter um signatário, um redator, mas não um autor. A função-autor, segundo Foucault (1992:51) trata-se de objetos de apropriação:

"[...] o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz do indivíduo um autor) é apenas a projeção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos".

Como pode-se perceber, existem processos internos de controle do discurso que se dão a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, visando domesticar a dimensão de acontecimento e de acaso do discurso. O autor é considerado como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como amparo de sua coerência. Entretanto, o princípio da autoria não vale para tudo nem de forma constante, há discursos que precisam de quem os assine, mas não de autores. Orlandi (2012:75) vai considerar que a própria unidade do texto é efeito discursivo que deriva do princípio de autoria. Atribui-se assim, um alcance maior e que especifica a autoria como necessária para qualquer discurso, colocando-a na origem da textualidade. Um texto pode até não ter autor específico, porém através da função-autor, sempre se imputa uma autoria a ele.

O princípio do autor em Foucault (apud ORLANDI, 2012:75) limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu. Das dimensões do sujeito, é a que mais está determinada pela exterioridade – contexto sócio-histórico – e mais afetada pelas exigências de coerência, não contradição, responsabilidade. Sendo assim, a autoria está mais submetida às regras das instituições e mais visível os procedimentos disciplinares. Se o sujeito é opaco e o discurso não é transparente, o texto deve ser coerente e seu autor deve ser visível, colocando-se na origem de seu dizer. É do autor que se exige: coerência, respeito às normas estabelecidas, explicitação, clareza, conhecimento das regras textuais, relevância, unidade, não-contradição, progressão e duração de seu discurso, ou melhor, de seu texto.

Essas exigências tem a finalidade de tornar o sujeito visível, enquanto autor, com suas intenções, objetivos, direção argumentativa. Enquanto autor, o sujeito reconhece uma exterioridade à qual ele deve se referir, ao mesmo tempo, remete a sua interioridade, construindo desse modo sua identidade como autor. Na relação exterioridade/interioridade, “aprende” a assumir o papel de autor e o que isso implica. Esse processo foi denominado como assunção da autoria. O autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa pela linguagem esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que diz e como diz. Não é suficiente falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição no contexto sócio-histórico. Se representar como autor é assumir, diante das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a linguagem.

O correspondente da função de autor é o leitor. Cobra-se do leitor um modo de leitura especificado, pois está, da mesma maneira que o autor, afetado pela sua inserção no social e na história. A identidade do leitor está configurada pelo lugar social em que se define “sua” leitura, pela qual ele é considerado responsável. Isso varia de acordo com a forma histórica, tal qual a autoria: não se é autor (ou leitor) do mesmo modo na Idade Média e nos dias atuais, pois a relação com a interpretação é diferente nas diferentes épocas, assim como também é diferente o modo de constituição do sujeito nos modos como ele se individualiza, se identifica, na relação com as diferentes instituições, em diferentes formações sociais, tomadas na história.

A relação entre texto e discurso oferece uma contrapartida que deve ser feita entre autor e sujeito. O sujeito (ORLANDI, 2012:73) está para o discurso assim como o autor está para o texto. A relação do sujeito com o texto é a da dispersão, enquanto que a autoria implica em disciplina, organização, unidade. O autor é lugar em que se realiza esse projeto totalizante, lugar em que se constrói a unidade do sujeito. O sujeito se constitui como autor ao constituir o texto em unidade, com sua coerência e completude. Coerência e completude imaginárias, deve-se acrescentar.

A retomada do discurso: uma análise 


Sendo um game, Alan Wake aposta na interatividade com relação ao jogador, desta forma apresenta uma linguagem que deve se adequar ao seu público. Para tanto o game constrói sua narrativa linearmente, porém vai apresentando os elementos da história aos poucos, deixando o jogador ir descobrindo o mistério que envolve a narrativa. Não há reviravoltas e também não é preciso que se fique atento à narrativa para que o jogo chegue ao seu final. Contudo, queremos atentar para o fato da escrita ser um fator que revela uma verdade para um sujeito que desconhece sua condição e o mundo que o envolve.

Em Alan Wake temos a metáfora da escuridão que domina e encobre a verdade. Alan conta como arma, uma lanterna, a luz que revela o outro, o tira da escuridão, torna-o vulnerável, humano. É sob esta luz que as páginas devem ser lidas, para que da mesma forma, a luz revelada pela escrita evidencia o autor em sua singularidade, desmascarando-o da dominação das forças sombrias. Como vimos, o correspondente do autor é o leitor, em Alan Wake temos um escritor que não se reconhece mais nessa condição, Alan está em meio a uma crise pessoal onde não é capaz de escrever. Só resta um caminho ao conhecimento de si: na forma de leitor. Entretanto, Alan vai ter que ler a si mesmo. A identidade do leitor está configurada pelo lugar em que se define “sua” leitura, pela qual ele é considerado responsável. Para o jogador, este terá que ler as páginas se quiser se envolver com o jogo um pouco mais a fundo. Isso quebra um pouco a forma de jogar, visto que muitos jogos possuem histórias simples apelando mais para (a violência) visual do que para a narrativa. Não só os jogos estão assim, mas o que se entende por digital carrega o apelo do visual. TVs maiores, não só em alta definição (HD) mas "Full". Quando vejo os anúncios ou as TVs nas lojas, penso quanto ainda falta para chegarmos às telas múltiplas de Bradbury, em Fahrenheit 451.

O acesso ao real apresentado pelo digital sempre foi um desafio a ser superado. Desde a pré-história o homem pintava a realidade nas paredes criando uma ligação entre o desenho e a coisa representada, a posse de um garantia a posse do outro. Hoje, por exemplo, esta mesma relação faz com que os símbolos de status acabem por identificar-se com o próprio status. Ter um carro é sinônimo de poder, mas não é qualquer carro e não é em qualquer lugar, o fato é que certos carros só podem ser símbolos de status, pois uma vez foram ditos pela sociedade como representante de certo valor. Seu desejo por aquele carro vai ver não é um desejo tão seu quanto você pensa. O que mudou foi o incremento da efemeridade nas representações. Vimos isso (ECO, 1976) na apresentação sobre a cultura de massa, o mass media tende a ditar o gosto existente, não promove renovação da sensibilidade, narra o acontecido muitas vezes de modo dramático e conturbado, representa uma emoção, mas ao invés de sugeri-la, a entrega pronta. Encoraja-se assim, uma visão passiva e acrítica do mundo, desencoraja-se o esforço pessoal pela posse de uma nova experiência.

Nesse ponto, Foucault (2006) vai alertar que também na escrita temos um lugar onde o sujeito vem a desaparecer. Na narrativa grega o herói era imortalizado, a reprodução do discurso fazia com que o herói sacrificado fosse salvo e tivesse sua redenção aceita; também na narrativa árabe o discurso salvava o autor da morte, assim foi com Sherazade que pondo fim nas barbaridades do rei salva também as outras mulheres com potencial para terem sido esposas do rei. De lá para cá, a narrativa tanto quanto a escrita só podem rogar o sacrifício. O esforço é ridicularizado. Assim é no entretenimento, mas se expande também para o trabalho e para a educação.

Ora, a ignorância ainda é tida como um abismo: escuro e ameaçador. Por que então continuar nesse abismo? Por certo seja preferível ficar vivo na ignorância, mesmo que ameaçado do que ter a morte que certamente virá com o esforço. O sujeito está a salvo em seu próprio desconhecimento. A morte que descrevemos aqui trata-se do apagamento dos caracteres individuais, ou seria melhor dizer sociais. Contradição da qual nunca se viu: ao se aventurar fora da superficialidade do discurso o sujeito evidencia-se tal como é sem os incrementos sociais que o envolve, pode vislumbrar a si mesmo sem o anúncio que o domestica, tais caracteres individuais são os mesmos aparatos adquiridos ao longo de uma vida que anunciavam torná-lo único, justamente os mesmos caracteres vendidos em cada esquina para tantos outros. Aquilo que há de mais subjetivo no sujeito moderno é comerciável. Assim são os takens que afrontam Alan em sua busca, pois não há muita diferenciação de um para o outro.

Na tragédia clássica, o herói é aquele que carrega em si a culpa por ter transgredido a sociedade, sendo depois perdoado e reintegrado à comunidade, em Alan Wake esta lógica está invertida. É a sociedade que, na figura dos takens (possuídos), ofende o indivíduo. Da mesma forma, a sociedade transgressora está presente em vários outros discursos da atualidade, veja por exemplo, Resident Evil (Capcom, 1996) e The Walking Dead (AMC, 2010), onde o que conhecemos enquanto sociedade se deteriora numa horda de corpos despossuídos de vida e de espírito, ou seja, ao mesmo tempo em que as cidades estão fechadas e os presídios estão abertos, também os corpos não só são despossuídos de objetivos como se encontra ausente o subjetivo. Uma rápida analogia com os walkers (caminhantes dispersos em sua errância) temos toda uma civilização em processo de deterioração social, são errantes desabrigados que caminham sem um propósito mais aprumado do que alimentar um corpo que não carece de alimento. Zikek (2013:23) disse uma vez que vivemos uma época em que eventos têm de ocorrer o tempo todo na tela para prender nossa atenção, o único diálogo que se admite consiste em comentários que precisam ser cada vez mais engraçados e inteligentes, e o único enredo aceitável são as narrativas de conspiração. Para Alan, a salvação está na aquisição do conhecimento, mais especificamente na descoberta de um saber que já é o do próprio sujeito, uma vez que já o possui, porém preso, submerso na escuridão do (des)conhecido.

De novo, recorremos a Zikek (2013:25) para nos certificar de que a filosofia moderna sofreu alterações em seu modo de reflexão. Primeiramente, com a virada kantiana perde a "inocência" e incorpora o questionamento de suas próprias condições de possibilidade; depois, com a virada pós-moderna, o filosofar torna-se experimental, deixando de fornecer respostas incondicionais, brinca com diferentes modelos, combinando diferentes abordagens que, de antemão levam seu próprio fracasso. O que se pode formular de maneira apropriada é a pergunta, o enigma, as repostas são somente as tentativas fracassadas de preencher a lacuna deste enigma. Podemos ver ainda como algumas redes sociais chamam seus usuários a participar: What's up? What's happening?  No que você está pensando? São perguntas interessantes, mas que nas redes cumprem a função de esvaziamento da rotina. Isso vai de encontro ao que disse Eco (1976) sobre os meios de massa, que voltados ao entretenimento, empenham-se em atingir o nível superficial de nossa atenção, através do uso de símbolos e mitos universais reduzindo assim a individualidade.

Para sair do efêmero, é preciso um movimento. A autoria sugerida por Foucault seria um movimento válido nesse sentido. O autor é o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos, representa pela linguagem esse papel na ordem em que está inscrito, na posição em que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que diz e como diz. Não é suficiente falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição no contexto sócio-histórico. Isso deveria, no mínimo, fazer com que o sujeito seja menos alienado. Há alguns momentos (excelentes, por sinal) no jogo em que Alan se defronta com um cenário onde muitos objetos estão representados pelas palavras que os nomeiam, assim onde deveria haver um telefone está a palavra PHONE, e ao apontar a luz para as palavras estas explodem deixando em seu lugar a coisa apenas. Pode-se dizer que Alan vai aos poucos encontrando o sentido das palavras, palavras aliás que tanto usou em seus livros, em suas histórias e que neste momento precisam oferecer algo mais que a coisa representada, tornando assim o mundo mais (ou menos, depende do seu ponto filosófico) real.


Se representar como autor é assumir, diante das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a linguagem. Para Alan, a crise profissional que enfrenta advém das histórias que uma vez escreveu. Vai vivenciar seu próprio pesadelo para sair da crise. Em  Matrix (1999), Morpheus anuncia a Neo que nem todos estão prontos para serem "desplugados" da condição em que vivem, da mesma forma, nem todos estão prontos para assumir a função-autor. É preciso que o sujeito já tenha iniciado esta busca, que esteja em crise, e isso significa o sofrimento infligido pela dúvida. Há ainda casos como o de Cypher que optam por viver na ilusão, sua frase ao vender Morpheus é: "a ignorância é uma bênção". O que de fato não percebemos é o engodo que nos é passado, como advertia Eco (1976) a manifestação que prega uma sociedade do bem-estar onde todos são sujeitos de direitos, com as mesmas oportunidades de acesso trata-se do mascaramento de um controle classista. Continuando com as analogias com Matrix, é o momento em que Morpheus oferece as pílulas para Neo (a azul que é a pílula para voltar a dormir - se não me engano é a mesma cor do Diazepam e do Valium... - e, a vermelha que revelará toda a verdade), nota-se que há um tempo entre o oferecimento da primeira pílula para a segunda, daí que só nos é oferecido uma única pílula - a saber: a azul - de quebra, sempre anunciando que temos a possibilidade de escolha da segunda pílula (que nunca é verdadeiramente ofertada).  


A dedicação no aprofundamento de uma narrativa apresenta uma dialética para o sujeito. Atualmente, os trabalhos penosos apagam o sujeito, escrever ao invés de revelar, obscurece. Na verdade o que fica menos evidente são os símbolos que sustentam o sujeito moderno, ou seja, seu status e seus representantes. Enquanto autor, o sujeito reconhece uma exterioridade à qual ele deve se referir, ao mesmo tempo, se remete a sua interioridade, construindo desse modo sua identidade como autor. Para Foucault (1992), a função-autor trata-se de objetos de apropriação. Por mais que o autor estude assuntos diversos, ou ocupe posições diversas, o que vai estar sempre implicado é a apropriação de si, do conhecimento que tal esforço implica. Diferentemente do que acontece nas redes sociais, ao designar uma autoria ao texto, ao dizer "isso foi escrito por fulano" já comporta uma indicação de que este discurso não é um mero discurso do quotidiano.

Acho no mínimo interessante a atividade de escrita ser um trabalho penoso, não se remete apenas ao suplício, mas porque em algum momento o trabalho de escrever recorreu à pena (e ao tinteiro). Acredito que num primeiro momento o ato de escrever, de se dedicar à elaboração de um discurso que vá um pouco mais além da superficialidade, seja um ato de flexão. E, ao retomar, ao recorrer a tal ato, aí sim, daí em diante teríamos sempre um trabalho de reflexão.



Referencial:
BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Trad. de Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2003.
ECO. Umberto. Apocalípticos e integrados. Trad. de Pérola de Carvalho. Coleção Debates (19), dirigida por J. Guinsburb. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. de António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. 3 ed. Lisboa: Editora Vega – Passagens, 1992.
FOUCAULT, Michel.  A ordem do discurso. Aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. Leituras Filosóficas, 13 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2006. 
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 10 ed. Campinas: Pontes Editores, 2012.
RESIDENT EVIL. Capcom, 1996. Site oficial disponível em http://www.residentevil.com/agegate.php. Última visita em 07 de janeiro de 2014.
THE MATRIX. Direção: The Wachowski Brothers. Warner Bros, 1999. 
THE WALKING DEAD. AMC, 2010. Site oficial disponível em http://www.amctv.com/shows/the-walking-dead. Última visita em 07 de janeiro de 2014.
ŽIŽEK, Slavoj. Alguém disse totalitarismo?: cinco intervenções no (mau) uso de uma noção. Trad. de Rogério Bettoni. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

Sobre o game Alan Wake:
REMEDY. Site oficial Alan Wake disponível em http://www.alanwake.com/. Última visita em 07 de janeiro de 2014.
Alan Wake na Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Alan_Wake. Última visita em 07 de janeiro de 2014.
ZANGADO. Alan Wake + DLCs: vale ou não a pena jogar [BR]. Disponível em http://youtu.be/egBt2llnulM, última visita em 07 de janeiro de 2014.  
 

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