quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Loucos espíritos


— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu
marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
(O alienista, Machado de Assis)

Tenho à minha disponibilidade uma sala com 10 computadores. Utilizamos este espaço não apenas para aprender informática, mas também para desenvolver interesses dos freqüentadores deste espaço. Explico melhor. A partir de uma orientação sócio construtivista, partimos daquilo que o sujeito traz enquanto bagagens e necessidades para se chegar a uma construção de saber que não seja alienista, mas sim interessante. Desta forma, abre-se a possibilidade de dizer aquilo que se quer saber, a partir do que já se sabe, as “aulas”, se é que podemos chamar assim, tornam-se muito mais produtivas e descontraídas. Fazemos isso exclusivamente através da informática.
Em uma destas discussões elegeu-se o espiritismo como tema a ser trabalhado. Eu, como não entendo do assunto decidi começar “pegando leve”. Fui assistir então Chico Xavier do Daniel Filho. Esperava encontrar algumas explicações sobre a doutrina, considerações e, claro, desconsiderações. Acabei encontrando outra coisa.
Infelizmente, não posso dizer se o filme é fiel à vida do Chico Xavier, ou ao espiritismo, pois já disse anteriormente, sou leigo no assunto. Tudo o que posso dizer é do filme em si.
É muito comum na infância que os pais façam apostas ou investimentos em seus filhos. É comum também, que em alguns casos, tem-se a falta desses investimentos, sobre esse ponto vale a leitura de “Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise”, de Marie-Christine Laznik-Penot (Escuta, 1997). Mesmo nas críticas e reprovações dos pais frente às manifestações da criança isso, não necessariamente, reflete a falta de investimento, mas ao contrário é o outro lado do elogio. De um jeito ou de outro, cria movimentos.
Chico Xavier tem desde a infância nos seus relacionamentos com os mortos àquilo que lhe falta com os vivos. Ou seria o oposto? O fato é que Chico circula pelos discursos da madrinha que o repreende, do pai ausente que está preocupado em buscar melhores condições financeiras, do espírito da mãe que lhe ampara, do espírito Emmanuel que lhe orienta com seus trabalhos, do padre que vê o trabalho do demônio nestas aparições, do lugar de louco frente à sociedade e, da confusão em assumir-se sujeito perante a estas vozes, quer sejam elas desse mundo ou não.
As possibilidades de vir à ser são muitas. Felizmente, houve alguém no caminho de Chico Xavier que o nomeou médium. Tente pensar neste lugar livre da religião, das noções de veracidade, livre do preconceito. Há muitos Chicos por aí, que não chegam à religião, acabam como loucos ou mendigos. Lembro de uma cena na qual Chico está andando na rua conversando “sozinho”, duas pessoas sentadas o tomam como louco, gesticulando o característico girar do dedo em volta da orelha. Então, todos os loucos ou mendigos que falam sozinhos são médiuns? Ou, todos os médiuns são loucos? Ou ainda, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa? ...
Ainda continuo buscando orientações, textos, discussões que possam tornar o tema espiritismo em algo interessante e que acrescente no conhecimento dos participantes do projeto. De uma coisa eu sei, encontrei no filme Chico Xavier a humildade e a simplicidade em lidar com as diferenças, com o desconhecido, em lutar por uma causa que seja justa, ao menos para mim. É com esse “espírito” que espero conduzir este tema. Lembrei-me de uma outra cena, dessa vez do filme da minha vida, saindo do estágio que fazia num hospital psiquiátrico aos sábados pela manhã, havia um jovem interno que dançava uma música, do outro lado do muro, próximo ao hospital um carro estacionado com um grupo de adolescentes ouviam música em som alto onde um  deles dançava. Se não fosse o muro os dois estariam dançando a mesma música.

"Eu usei drogas"

Então por favor, não me trate como um marginal
             Se o papo for por aí, já começamos mal
(Queimando tudo, Planet Hemp)

Fui procurado recentemente para atender a um jovem que havia feito o uso de maconha. Este pedido chegou através do coordenador do projeto do qual faço parte numa ONG, este coordenador, por sua vez, recebeu a ligação da mãe do jovem. Esta mãe ouviu o relato do próprio adolescente sobre sua experiência com a maconha, numa tarde normal, de um dia normal no meio da semana, após uma partida de vôlei.
Em primeiro lugar é preciso notar a rede que se traçou a partir deste incidente. O jovem, a mãe, o coordenador, eu e, o jovem novamente. Acredito que não seja um círculo, pois não posso dizer que após ter conversado com o rapaz, este tenha novamente falado com sua mãe, esta com o coordenador... Assim, o incidente tenha sofrido distorções, não propositais, mas inevitáveis. Até aqui sem grandes novidades, um adolescente que faz uso de uma substância ilícita em uma roda de amigos, não é lá matéria para noticiários. Entretanto, faz pensar.
Vamos começar do fim. Tive uma conversa muito tranquila com o jovem que disse ter experimentado a maconha por curiosidade, não gostou e não pretende voltar a usar. Tudo o que eu dissesse a partir desse momento seria, no mínimo, sensacionalista. Talvez eu tenha agido com um certo descaso. Ou não? O que, de fato, eu pretendia com essa conversa?
De acordo com o coordenador, a mãe ligou “aflita” para relatar o ocorrido e se poderíamos conversar com o rapaz. Entendo a aflição da mãe, afinal, a mídia fez bem seu papel em divulgar o caminho que as drogas levam. Mas, isso pode ser generalizado? Todo uso de uma droga levará a este mesmo caminho? Lembrando que “droga”, do ponto de vista médico, é toda substância que ingerida, altera o funcionamento do organismo. Assim, a cafeína presente no café pode ser entendida como uma droga, mas nenhuma mulher ligará para conversarmos com seu marido que ingeriu café após almoçar. A preocupação nesse caso se deve ao uso abusivo e (in)consequente de uma substância. Neste caso, a maconha, que frequenta o hall de substâncias perturbadoras do bem moral social. A mãe, portanto, quando nos ligou deveria estar pensando “ele usou drogas!”. Mesmo que houvesse algum histórico na família sobre uso de drogas com um final infeliz, ainda questiono: é possível generalizar?
Quando o coordenador atende à demanda da mãe e nos encaminha o caso, este também deveria estar pensando “ele usou drogas!”. Provavelmente, preocupado com as consequências deste uso, e preocupado com o jovem em questão. Nesse caso, experimentar uma droga, também abre a possibilidade de um caminho com final trágico. Sugestivo, mas incerto. Vale o dito “prevenir é melhor que remediar”. Ok! Foi com esse pensamento que decidimos conversar com o jovem. Fizemos nosso papel, acalmamos a mãe, orientamos o jovem que nos revelou “eu usei drogas!”, e demos o caso por encerrado.    
Devo confessar que também pensei “ele usou drogas!”, mas decidi agir com tranquilidade nessa questão, defendendo que, fazer uso de uma substância ilícita não levará o usuário (aquele que fez o uso!!!) ao abuso, ou ao vício. Não estou fazendo nenhum tipo de apologia, só decidi não dar ouvidos ao apelo sensacionalista que a frase “usou drogas” pode trazer.
Talvez a essa altura, caro leitor, você já tenha percebido qual foi nosso maior erro... Se não percebeu, seja bem vindo ao clube. Vamos rever a cena, após um jogo de vôlei na escola, o jovem se encontra com seus amigos que estavam fumando um baseado, oferecem e ele aceita. Teve seu “barato”, foi para casa ao fim do dia e decidiu contar aos pais que havia fumado maconha. Provavelmente, deve ter levado um sermão dos pais, a mãe liga para a instituição que o jovem frequenta aos sábados para que nós também o orientássemos. Todos deixamos passar um ponto crucial dessa história toda: por que o jovem contou aos seus pais sobre o uso?
O que o motivou a usar a maconha, ou se vai continuar a usar ou não, acabou sendo o tema central, deixamos de lado as motivações que o levaram a noticiar este fato aos pais. Questionar este ponto, provavelmente, teríamos incitado ao diálogo. Mas acabamos optando, tanto de um lado quanto de outro a repreender, prevenir e orientar. Ou seja, optamos pelo sensacionalismo.
De acordo com Freud em seu texto “Repetir, recordar e elaborar”, de 1914, os conteúdos psíquicos esquecidos e/ou reprimidos, não podem ser recordados de outra forma senão pela atuação (acts it out), esses conteúdos são reproduzidos enquanto ação e não como lembranças, repetindo-os sem saber que o está fazendo. Por exemplo, o sujeito que se comporta de forma desafiadora com figuras de autoridade, diz não se lembrar de que agia desta forma com os pais. Da mesma forma, a atitude de nosso jovem com relação às drogas e ao seu desfecho com os pais, permaneceu apenas como ação, ou melhor, como atuação. Sem a possibilidade de expressar-se em palavras esta atuação tende à repetição, quer seja pelo uso de drogas, ou numa outra atitude desafiadora qualquer. Espera-se, entretanto, que o jovem ainda esteja aberto ao diálogo quando isto acontecer.

A afirmação do telefone-sem-fio


“E a gente vai à luta
      E conhece a dor
      Consideramos justa
      Toda forma de amor ô ô ô ô ô ôôôô ... Hey!”
(Toda forma de amor, Lulu Santos)

Que atire a primeira pedra quem nunca brincou de telefone sem fio. A “graça” desta brincadeira se dá pelas distorções da qual a mensagem inicial chega ao último participante que se compromete a pronunciá-la. Raríssimas vezes, presenciei cenas onde este último participante foi responsabilizado por ter dito a frase distorcida, ou melhor, torcida. Mas, é comum que cada um se justifique dizendo ter ouvido a frase assim e assado, tirando a culpa de si, entretanto, como é uma brincadeira, todos riem.
Infelizmente, tenho visto essa mesma dinâmica se dar nas relações interpessoais. Com uma diferença significativa, ou seja, nestes relacionamentos a culpa quase sempre recai sobre um sujeito, ou um grupo, sempre há um bode expiatório. Aquele que carregará os erros de todos e será rotulado como um atentado ao bem social.
Ouvi, recentemente, a seguinte frase dita por um jovem: “Agora que eu tenho camisinha eu posso transar.”. Ao contrário de muitos, vou fazer minhas torções e distorções nas teclas de um computador.
Vamos ao contexto em que esta frase foi dita. O jovem em questão, teve como missão produzir um material publicitário sobre HIV/Aids, para tanto, fez-se necessário analisar um material já existente encontrado nos SAEs (Serviços de Análises Especializadas), postos de saúde, ONGs, nas farmácias, enfim, encontrado em “praça pública”. Além disso, visto a grande proporção que o tema HIV/Aids pode tomar, é preciso delimitar o terreno da propaganda definindo um sub tema como, preconceito, tratamento, prevenção, transmissão vertical, e outros. Uma vez feito isso, partiremos a uma pesquisa mais especializada para poder ter autoridade sobre o assunto que vai ser tratado na propaganda e tornar-se capaz de expressar uma opinião sobre, transformado logo após em publicidade. Esta oficina é realizada em uma ONG com um grande trabalho voltado ao tema aids. Andar pelas dependências da instituição e topar com preservativos disponíveis a todos é algo bem comum, além de muitos cartazes sobre a causa.
A frase começa com uma disposição no tempo, “agora” diz respeito a este exato momento, ao hoje, à emergência de fazer, não ontem nem amanhã, mas agora. Certo que, enquanto você lê este texto, o agora passa. Passa a fazer parte do passado, passa a passar. Não assume mais o hoje. Será? Usar a expressão agora anuncia também a disposição para algo, fala de um desejo que AGORA pode ser dito. O que impedia este desejo, não o impede mais, manifesta-se em palavras e não raro em ações.
Nesse caso a autorização se dá pelo porte de um preservativo, este preservará sua saúde, mas não preserva a manifestação do desejo. Ao contrário, faz falar, faz aparecer uma autoridade sobre um poder fazer, ser capaz, sentir-se livre para ser expresso. É nesse caminho que a frase continua com “eu posso transar”.
Portar algo usado em relações sexuais autoriza a transar? Não, necessariamente. Mas, mexe com os desejos. E o que fazer com os desejos? Devem ser atendidos? Devem ser repreendidos? As possibilidades não se esgotam aqui. Mais importante que isso, é reconhecer a autenticidade do desejo e, mais importante ainda, é reconhecer a autoridade de quem fala. Um pequeno parênteses... o jovem é do sexo feminino. Uma vez empenhados em assumir posturas conscientes e críticas, dar voz ao outro e procurar ouvi-lo é um exercício válido. Espera-se que a tal jovem faça realmente o uso do preservativo.
Dia chegará em que todos poderão falar livremente o que pensam sem serem questionados e medidos, a brincadeira telefone sem fio perderá a graça, as manifestações de amor serão plenas e sinceras. Quando esse dia chegar espero não estar mais entre vós.