segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Viagem do ponto na frase

Um amigo compartilhou sua análise sobre uma foto (neste link) e, como pediu minha opinião, não pude evitar prestar atenção em um erro de digitação acidental, digamos assim, para evitar possíveis constrangimentos, ou maiores manifestações de cunho persecutório. Seu erro foi notado nesta frase:

"A vida surge para acabar, ela sabe disso .E com as mãos impostas quase em oração, segura uma caneca para a qual mira fixamente o lado de dentro."

Como sabemos quando uma frase termina? Não é uma questão existencial, ou talvez seja (atualmente, ou tudo é, ou nada é). Podemos começar uma frase usando um olá, era uma vez, cordial Sr., invariavelmente deve começar com uma letra maiúscula. Assim teríamos um Olá, Era uma vez, Cordial Sr.. A primeira letra da frase se marca pela diferença dentre as demais, neste caso seu tamanho difere do restante da frase. Em alguns livros, ou revistas, ou... enfim, sua marca diferencial é notavelmente gritante. Pensem no "E" de Era uma vez, quando este vem num estilo de letra mais elaborado, ocupando às vezes, tantas linhas do parágrafo. Desta forma, quando nos deparamos com um caso desses sabemos que ali tem início uma ideia, um raciocínio, uma divagação, uma análise, uma verdade ou uma mentira (depende do seu posicionamento filosófico), mas e quando isto termina?

Com certeza o fim não é marcado pela mesma característica do início, fato que constatamos em nossas leituras, pois não vemos uma letra diferenciada no final das frases. Provavelmente, um ponto de vista da gramática, costume, regra, ou ainda, uma analogia com um certa filosofia ocidental que evita a todo custo admitir sua finitude. Não tenho capacidade para afirmar, portanto, só posso questionar: em outras culturas a última letra da frase é maiúscula? Caso a resposta seja não, a questão sobre o fim é universal.

Não poderíamos usar a mesma regra do início para marcar o fim, são diferentes na vida, são diferentes na gramática. Bom, e quanto à questão inicial: como sabemos quando uma frase termina? Vamos olhar de novo a frase que meu amigo usou para iniciar seu texto: "A vida surge para acabar, ela sabe disso ." Notaram qual foi o erro? Não?! Leia de novo. Pronto! ou deveria dizer: Ponto! O ponto da frase que deveria marcar seu fim está no início da frase seguinte. Vou ilustrar a importância do ponto no final da frase com um exemplo: "Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude." (Borges, 2001, p.92). Para determinar o término da frase usamos o ponto. Se mudarmos este ponto a frase muda também, inclusive seu sentido, "Como todos os homens da Biblioteca, viajei."; "Como todos os homens da Biblioteca."; "Como todos os homens."; "Como todos."; "Como.".
Foi um erro de digitação, muitos dirão numa tentativa angustiante de justificar o erro. Mais uma vez, chegamos a outra questão atual, parece que as justificativas sobre nossos erros, que quase sempre geram angústias, são inesgotáveis, e ao mesmo tempo insuficientes. Por serem insuficientes, não justificam o erro, gerando novas angústias (tautologia, concordo!). Voltemos à frase, então. Talvez tenha sido ironia esta situação se dar justamente numa frase que fala sobre a morte. Na tentativa de afirmar a existência da morte marcando a inexistência do sujeito, a frase falha, pois não termina onde deveria, ou seja, no ponto. Este fica para iniciar a frase seguinte, conceito embutido pelas religiões, sob o discurso de que a morte é a entrada para uma outra vida. Provavelmente, o erro não tivesse se dado se a frase terminasse em acabar, assim os iis teriam seus pingos. O texto começaria falando sobre o início da vida. A frase que falaria sobre a morte terminaria na palavra acabar. O problema se deu em admitir um saber: ela sabe disso. Pode até ser que ela saiba e que, de alguma forma, nós todos sabemos que o dia derradeiro chegará. Mas, tentamos a todo custo não saber. Assim, podemos continuar errando, e justificando estes erros sem fim. Quando justificamos um erro tentamos produzir um acerto. Ao acertar aquilo que é falhado não se revela, ficamos menos angustiados e seguimos esperando o famoso fim das histórias que se iniciam com Era uma vez..., e viveram felizes para sempre.

Corrigiria a frase se este fosse o caso, mas como ela revela algo a mais, prefiro deixar como está. Afinal, "a vida surge para acabar, ela sabe disso ."

2 comentários:

  1. Aê Renan, vou tomar a liberdade para compartilhar um outro comentário seu sobre este texto, que achei a frase final excelente:
    "quem diria que um ponto, ".", daria tanto o que falar, ou viver, ou não falar. Uma letra capitulada no início e um ponto no final. Um início grandioso e uma morte diminuta, quase invisível. Uma contradição interessante já que a vida é ao contrário:
    .começa pequena e, geralmente, é na velhice que a pessoa se consagra e tem a chance de se tornar grandiosA"

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