sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O anticristo e o femicídio

"Onde está você? Seu bastardo!"



É a partir desta frase que quero começar algumas considerações sobre o filme Anticristo (2009), direção de Lars Von Trier.

A frase é dita num momento de ápice do filme quando a mulher procura o marido que se refugiou na floresta após ter sido acoplado por uma roda de cimento à perna. Para quem não assistiu ao filme a coisa aqui começa a ficar confusa. Assim sendo, vamos a um pouco de contexto (que faz parte de toda análise).

O filme é dividido em um Prólogo, quatro capítulos compostos por Grief (Sofrimento), Pain (Chaos reigns) (Dor [Caos reina]), Despair (Gynocide) (Desespero [Ginocídio]), The Three Beggars (Os Três Mendigos) e um Epílogo. Basicamente, o filme narra a história de um casal que vive o luto pela perda trágica do filho. O marido, terapeuta, usa de um método cognitivo-comportamental para ajudar a esposa a sair de um estado de depressão e ansiedade devido ao acidente com o filho, negando o tratamento médico baseado em substâncias químicas (e terminologias).

A "plástica" do filme, digamos assim (pois não sou um especialista em filmes para usar outro termo), é algo marcante. A construção das cenas, os cortes da câmera, a ambientação, os personagens e a expressão dos personagens, é magnífico. Por exemplo, o prólogo é composto de cortes de imagens em câmera lenta ao som de "Lascia ch'io pianga", do compositor Handel, que não à toa, canta, sob a voz de uma mulher, o desabafo de uma terrível desgraça. A sequência de imagens mescla o ato sexual de um casal, interpretados por Willen Dafoe e Charlotte Gainsbourg, com o fatídico acidente envolvendo uma criança que cai da janela do apartamento.

 
O Homem e a Mulher não possuem um nome específico, já o filho é chamado por Nick. Por isso usaremos a defnição com letra maiúscula para nos referirmos aos personagens, que vão compor, sozinhos, todo o filme. Mesmo na cena sobre o enterro do filho as demais pessoas tem a face desfocada, diferentemente do Homem e da Mulher.

Até aqui só oferecemos o que pode ser lido em tantas outras resenhas, daqui em diante é por sua conta e risco concordar ou discordar.

Voltemos então à frase dita no começo do texto: "Onde está você? Seu bastardo!". Sabemos que o termo bastardo pode se referir a um xingamento, diz respeito a uma pessoa não-digna, da mesma forma, bastardo é o filho de uma gravidez indesejada e que ocorreu fora do casamento, com outro homem. É justamente este ilegítimo o procurado. Ora, o nome do filme já diz muito: Anticristo, ou o Não-Cristo. O próprio Cristo é um filho bastardo. Não é filho de um pai, mas sim filho do Pai. Não é José, marido de Maria, o pai "biológico" da criança, mas sim Deus, Pai de todos. Também não me recordo a menção de uma Maria fazendo fila para que seu filho fosse o Salvador, este acontecimento é algo contra sua vontade, cabendo à mãe aceitá-lo ou não.

Os acontecimentos que antecedem esta procura também são dignos de nota. O luto "anormal" como é caracterizado pelo médico da Mulher, é oriundo da culpa por possuir um saber a mais do que o Homem. No filme, Ela sabia que o filho acordava no meio da noite e andava pela casa. Ele decide levá-la do hospital e, ao seu modo, tratá-la. Para Ele: "O luto não é uma doença, é uma reação natural, saudável", começa aqui uma relação entre terapeuta e paciente. Motivo, aliás, segundo Ela de que Ele possa vir a ter algum interesse nela. As intervenções dele é marcadamente sobre esta relação terapeuta-paciente. Ao deixarem o hospital, a imagem é direcionada e ampliada para um vaso de flor numa prateleira ao lado dos medicamentos. Único objeto vivo, além do Homem e da Mulher, presente em cena onde o foco nos direciona para a água do vaso, água que possibilita a vida da planta, água fonte de vida de todo ser vivo; detalhe: a água está suja.

Se aqui podemos dizer que o estado da água é sujo, através do uso de "está" ao invés de "é", trata-se de uma questão semântica. A água encontrada na natureza, em sua maior parte, não é potável, ao menos para os seres humanos, pois não se vê outros animais checando a qualidade da água antes de ingerí-la. Assim é que, a água não é suja em si, mas enquanto fonte de vida para o homem deve ser levada a um outro estado. A água também faz parte de um rito de iniciação, de purificação na religião através do batismo. Veja, um dos momentos mais difíceis para Ela é atravessar um riacho que separa a casa de campo da civilização. Uma outra possibilidade seria o enfoque para a sujeira a partir da relação terapêutica, uma vez que Lars vinha se recuperando de um quadro depressivo. Diz-se que esta depressão de Lars é fruto da revelação de sua mãe, no leito de morte, de que Lars não é filho do homem que sempre acreditou ser seu pai. Num momento do filme, Ele, ao negar a interpretação dos sonhos para a psicologia moderna ouve o dito d'Ela: "Freud está morto, não está?!", num sorriso sarcástico Ele responde: "Sim." Freud é considerado o pai da psicanálise. Haja terapai (erro de digitação com terapia)...



A casa de campo que mencionamos anteriormente é situada no Éden. Ela reclama ao marido o desinteresse deste nela e em Nick que, passaram o último verão, mãe e filho, no Éden sem o pai. Ela havia se refugiado no Éden para terminar sua tese que tratava sobre o "Gynocide". Ora, é este o título do terceiro capítulo, "Despair (Gynocide)", que numa possível tradução teríamos, "Desespero (Femicídio)". O termo "femicídio", ou "feminicídio", é usado para expressar a violência de gênero, contra a mulher, entretanto, existe a palavra na língua inglesa correspondente ao femicídio, "femicide". Lars usou "gynocide" e não "femicide", o sufixo -cidio é usado em palavras que correspondem à morte, ao extermínio, já o prefixo gino-, por sua vez, é usado como designativo de mulher, contudo, é mais comumente encontrado em terminologias que apontam para o órgão genital da mulher, como em exames ginecológicos, por exemplo.

O refúgio dela e do filho na floresta, é para onde se dirige com Ele. Segundo Ela é o local que mais lhe apavora, que na visão do Homem este medo deve ser enfrentado, e veja bem, não é qualquer floresta que lhe causa pavor, mas uma específica, o Éden. Justamente o lugar onde "a" mulher foi amaldiçoada. Se no início só havia Eva, não poderíamos usar o artigo indefinido "uma", para dizer que nos Jardins do Éden, uma mulher oferece a fruta do pecado a Adão. Foi a mulher. 

O problema com o artigo definido é a nossa questão central, mas vamos guardá-la para nosso desfecho. Até aqui vamos nos contentar com o fato de que, em companhia do filho, Ela descobre sobre a violência que a mulher vem sofrendo ao longo da história. É a partir de um saber da Mulher, assim como foi o saber de Eva sobre a maçã, que Ela se dá conta do lugar ocupado pela mulher... Vide, por exemplo, os casos da Inquisição em que mulheres foram levadas à fogueira acusadas de bruxaria. O Éden, sob o ponto de vista da mulher, não é paradisíaco, mas assustador. Constatação feita a partir da analogia que Ela faz com as sementes de carvalho que caem aos montes no Éden, porém sempre morrendo. A Mulher pode ouvir "o choro de tudo o que vai morrer", o que para o Homem não passa de uma metáfora, pois "sementes não choram", daí para Ela se transformar numa bruxa não foi preciso muito esforço...
 
O ato sexual entre o Homem e a Mulher vai mudando conforme o "andar da carruagem". No início era algo idílico que resultou na morte do filho - e todo ato sexual entre os pais não é a "morte" do filho, terceiro da relação edípica freudiana?, no decorrer do filme o ato sexual vai se desvinculando das fantasias, do ato de gozo, obtenção de prazer, e vai se transformando somente em ato sexual. Ele(a) já não transa mais com Ela(e), que agora é sua paciente. Momentos antes de fixar uma roda de concreto na perna dele, Ela acerta o pênis do marido com um pedaço de madeira, para, em seguida, masturbá-lo com o desfecho de um gozo de sangue.   



Liga-se o sexo ao anticristo, sendo o sexo enquanto obtenção de prazer, um pecado considerado pela Igreja, como pecado mortal. A mulher pagou um preço muito mais caro com relação ao homem, ou até mesmo com relação ao próprio sexo. O Cristo, por sua vez, passou por esta vida sem este pecado. Se, em seu nascimento, representação da vida, houve a visita dos três reis, ao anticristo, representação da morte, só cabe esperar a visita dos três mendigos, aqui incorporados na figura de um cervo, uma raposa e um corvo, segundo a ordem em que aparecem no filme. "Quando os três mendigos chegarem alguém tem que morrer."


O cervo traz preso em si um feto natimorto e é designado (vide as constelações) como o sofrimento. Na língua portuguesa, o termo "cervo" é masculino, a concepção de um feto é impossível no masculino, delegando ao feminino o ato de conceber. No inglês, língua original do filme, deer (cervo), fox (raposa) e crow (corvo) não possuem em sua terminologia o gênero masculino ou feminino como em "lion" (leão) e "lioness" (leoa), desta forma, podemos destacar que aquilo que se refere ao gênero, não está no nível lexical, mas deve ser inferido a partir do contexto. 


Por outro lado, a raposa, termo feminino, aparece devorando as próprias entranhas. Com o ventre infértil, de sua boca ouve-se um sonoro "caos reina". Já ao corvo, ou ao desespero, é deixado como um tipo de denúncia, uma vez desenterrado é o que entrega o Homem à Mulher quando esta o procura: "Onde está você? Seu bastardo!". Por outro lado, cumpre também uma função inversa, ironicamente o desespero revela tanto a prisão quanto a libertação.


Num exercício de role playing entre o Homem e a Mulher, sendo Ele a Natureza e Ela o Pensamento Lógico, nota-se aqui os papéis trocados daquilo que a representação popular considera como homem (lógico e racional) e mulher (emocional), a Natureza vem a ser considerada como algo externo, mas também interno ao sujeito, nas palavras da Mulher: "o tipo de natureza que faz as pessoas causarem mal às mulheres." Ao contrário do dito popular ou da crença religiosa, o bem e o mal, estão presentes em todos, da mesma forma o masculino e o feminino, indo além de uma análise gramatical. Para o filósofo Nietzsche (leitura indispensável de Lars) em Genealogia da Moral, os conceitos de "bom" e "mau" não passam de valores criados do homem para o homem. Nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, Freud já considerava a criança como uma perversa polimorfa, uma vez que, as pulsões sexuais ainda não se encontram "erotizadas" ou devidamente canalizadas para um objeto específico, seja ele qual for.



Nietzsche dizia, em Assim falou Zaratustra, que "mano, tá fudido o homem quando a mulher odeia: porque, no fundo, o homem é simplesmente mau; mas a mulher é perversa". A Mulher passa a torturar o Homem, não mais vítima de um jogo terapêutico repleto de chavões e exercícios, ou de uma História carregada de dor e sofrimento, mas sim como sendo, simplesmente "a" mulher, autora do próprio gozo. Pois, é este o desfecho do filme e, consequentemente, de nossa análise. Na psicanálise lacaniana encontramos o argumento de que toda mulher está submetida à Lei, porém não-toda. Ao buscar o próprio gozo "na" mulher, enquanto classe, encontra o vazio (caos reina), pois este gozo não está lá. Fato que leva a Mulher a se automutilar, cortando o clítoris com uma tesoura, ao buscar um gozo no Outro, fora de suas fantasias. É o uso do artigo defnido "a" que leva a Mulher ao inevitável desfecho, ou como diria Lacan: "Ⱥ mulher não existe". 

Sinceramente, esperava que o final fosse outro, mas ora, o triunfo de "uma" mulher (agora com o uso do artigo indefinido) não está preso a um discurso épico, e sim, nas conquistas do dia-a-dia numa sociedade, predominantemente, machista. 

Agora, será que alguém pode me explicar o epílogo...?

2 comentários:

  1. Cara, é o seguinte. Adorei a tua resenha (crítica, por que não?!) sobre o filme, e muito do que voce falou faz sentido, apesar de eu nada saber sobre pscicanalise freudiana ou pensamente critico nietzschiano... vou pesquisar mais sobre isao. nao sei se o meu pensamento é simplista demais, mas eu acho que todas aquelas mulheres do epílogo representam nada mais do que a natureza da mulher, como se toda arvore, planta e animal virasse uma mulher (que sofreu em funçao do seu sexo no decorrer da história) e viesse para sua vingança final, como se o espirito da mulher estivesse finalmente evocado a perversidade ha tanto tempo escondida na floresta do éden. é essa perversidade da mulher que tu falou... não sei, talvez esteja completamente errado, ou não. abraço

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