segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Análise do discurso e Análise do eu

Quando se pensa em analisar algo, acaba-se caindo no seguinte problema, deve-se analisar o discurso sem levar em conta aquele que diz, ou então é necessário analisar somente o eu. Num texto do Lacan (1986) chamado Análise do discurso e Análise do eu (O Seminário, Livro 1 - Os escritos técnicos de Freud), podemos perceber quais podem ser os enganos cometidos nestas análises. Lacan vai discursar sobre dois casos analisados por Anna Freud e outro por Melanie Klein.

É muito difícil definir o eu como uma função autônoma, sabendo que esta metodologia segue o eu caracterizando-o por um bifuncionamento, por uma splitting (divisão), ao mesmo tempo em que se toma o eu como um mestre de erros, sede das ilusões. Anna Freud em seu livro O Eu e os Mecanismos de Defesa (1946), trata o eu como se este fosse um homenzinho que está dentro do homem, tendo uma vida autônoma dentro do sujeito estando ali para defendê-lo, na análise, sustenta a autora, o eu só se manifesta pelas suas defesas, ou seja, na medida em que se opõe ao trabalho analítico. Lacan vai dizer que a função dinâmica do eu no contexto analítico permanece contraditória, justamente por não ter sido rigorosamente situada.

Num estudo de caso que trata das resistências do eu, Anna Freud conta que o comportamento de sua paciente no início da análise é amigável e franco, mas que esta evita cuidadosamente nos relatos aludir ao seu sintoma, deixando passar em silêncio as crises de ansiedade que tem no intervalo das sessões. Quando a analista tenta fazer o sintoma entrar na análise ou interpretar a ansiedade, o comportamento amigável da paciente se modifica. Nesses momentos a paciente descarrega na analista discursos irônicos e de sarcasmos que a desconcertam. "Entretanto, uma análise mais aprofundada mostra, em seguida, que zombaria e caçoada não constituem, para falar propriamente, uma reação de transferência e não estão de modo algum ligados à situação analítica. A paciente recorre a essa manobra, dirigida contra si mesma, cada vez que sentimentos de ternura, de desejo, ou de ansiedade estão para surgir no consciente.", relata Anna Freud. Para a autora, a técnica que se impõe neste caso é a de analisar a defesa da paciente contra seus afetos e em seguida estudar a sua resistência na transferência.

Lacan vai dizer que neste caso a necessidade de analisar a defesa do eu, trata-se de um erro. Anna Freud tomou as coisas pela relação dual entre ela e a doente. Tomou a defesa da paciente por aquilo através do qual se manifestava, uma agressão contra ela (Anna Freud). É no plano do eu dela (Anna Freud), é no âmbito da relação dual com ela (Anna Freud), que percebeu as manifestações da defesa do eu. A manifestação da transferência segue a fórmula que faz da transferência a reprodução de uma situação. Justamente, por não oferecer como esta situação é estruturada é que esta fórmula torna-se incompleta. Assim, a análise não pode progredir, pois não deveria ter distinguido a interpretação dual, onde entra a rivalidade de eu a eu (analista e analisando). Freud nos diz que é a conclusão de um pacto que define a entrada na situação analítica, o eu do paciente promete a livre disposição de tudo que a sua autopercepção lhe entrega. Do outro lado, é assegurado a maior discrição e colocado ao seu serviço a experiência do analista na interpretação do material submetido ao inconsciente. Quando se caminha rumo à descoberta do inconsciente, o que se encontra são situações estruturadas, organizadas, complexas. Freud deu o primeiro modelo através do Complexo de Édipo. Todo o desenvolvimento da análise é feito pela valorização sucessiva de cada uma das tensões implicadas nesse sistema triangular. Nisto reside um caráter profundamente dissimétrico em cada uma das relações duais que compreende a estrutura edipiana, a relação que liga o sujeito à mãe é diferente da que liga ao pai, assim como a relação narcísica ou imaginária com o pai é diferente da relação simbólica, e também da relação que Lacan chama de real. Este esquema deve ser mantido como essencial, pois ele é fundamental, não somente para toda compreensão do sujeito, mas também para toda realização simbólica, pelo sujeito, do inconsciente.

"É a reconstrução analítica que o sujeito deve autenticar", afirma Lacan. E esta reconstrução não é baseada na integridade da memória, mas é com o auxílio de vazios que a lembrança deve ser revivida. O real, ou o que é percebido como tal, é o que resiste absolutamente à simbolização. Certas interpretações (do conteúdo) não são simbolizadas pelo sujeito. Manifestam-se numa etapa em que não podem lhes dar a revelação de qual é a sua situação nesse domínio interditado que é o inconsciente, estando ainda no plano da negação da negação. Algo dessa ordem está para além do discurso e necessita de um salto no discurso, o recalque não pode desaparecer simplesmente, só pode ser ultrapassado. Àquilo que Anna Freud chama de análise das defesas contra o afeto é uma etapa da sua própria compreensão e não da compreensão do sujeito. Ao acreditar que a defesa do sujeito é uma defesa contra ela isso permite com que possa analisar a resistência da transferência. Isto leva a alguém que não está lá. O ponto de vista de Anna Freud é intelectualista, e a leva a formular que a análise deve ser conduzida a partir de uma posição mediana, moderada, que é a posição do eu. Para Lacan, o contexto da análise é reconhecer que função assume o sujeito na ordem das relações simbólicas que cobre todo o campo das relações humanas.

Uma outro estudo sobre um caso analisado por Melanie Klein (The Importance of Symbol-Formation in the Development of the Ego - 1930), Lacan vai apontar que Klein "enfia o simbolismo, com a maior brutalidade no pequeno Dick!". Ela o joga numa verbalização, um tanto quanto, brutal do mito edípico - Você é o trenzinho, você quer foder a sua mãe. A falta de contato do pequeno Dick se dá pelo simples motivo de que seu ego ainda não está formado. Para Melanie Klein, Dick se distingue dos neuróticos, na sua indiferença, na sua apatia, na sua ausência. Com efeito, o que nele não é simbolizado é a realidade. O mundo humano é um mundo infinito com relação aos objetos, a esse respeito, Dick vive num mundo não-humano. No consultório de Klein, não existe para ele nem outro nem eu, há uma realidade pura e simples. Os trens e tudo que se segue é, sem dúvida, alguma coisa, entretanto é algo que não é nem nomeável, nem nomeada, pois não pode nem mesmo chegar à primeira espécie de identificação, que já seria um esboço de simbolismo. Dick não apenas está na realidade, mas vive na realidade. De acordo com Lacan a relação entre Klein e Dick se manifesta da seguinte forma, "ele está lá como se ela não existisse, como se fosse um móvel. E, entretanto, ela lhe fala." Normalmente, o sujeito atribui aos objetos de sua identificação primitiva uma série de equivalências imaginárias que multiplicam seu mundo, ou seja, traça identificações com certos objetos, retira-os, refaz com outros. Cada vez, a ansiedade interrompe a identificação definitiva, a fixação da realidade. Estas voltas vão emoldurar a esse real infinitamente mais complexo que é o real humano. Para Dick a realidade está bem fixada, vinda ao longo do qual as fantasias são simbolizadas, mas porque ele não pode fazer essas idas e vindas. Já tem uma certa apreensão dos vocábulos, mas não é possível assumí-los. Quando vê sobre o corpete de Melanie Klein, pedacinhos de lápis que são o resultado de um despedaçamento, diz "Poor Melanie Klein".

Nenhum comentário:

Postar um comentário