sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

hipótese sobre o fantasma

Ao analisar alguns casos e suas relações com o fantasma, Calligaris (1986, pg. 18) estabelece que o fantasma fundamental que comanda a vida sexual de cada um, incluindo também os devaneios a que chamamos de fantasias, só desdobra sua eficácia com a inquietação constante de garantir o fracasso de sua atualização. No caminho da busca de um sentido, o fantasma pode exibir toda a riqueza de sua gramática, antes que o momento chegue de um ato analítico possível, um ato que confronte o sujeito com a mais simples escritura de sua montagem.
Diz-se que a linguagem é o campo do Outro, supõe-se, portanto, que há desejo no Outro.  Independentemente das intenções particulares, confessas ou inconfessadas, de qualquer indivíduo que seja, é na falação que se produz o desejo. “É num tempo logicamente segundo que um ser que será falante suporá um sujeito de um tal desejo e mesmo assim, um Sujeito Outro, que não coincide com nenhum dos outros, seus semelhantes.” (Calligaris, idem, pg. 22). Assim como aquilo que é tomado no fim de uma análise, aqui também entende-se que existe primeiro desejo na linguagem e, logo após, um desejo que se determina quando um Sujeito é suposto.  A linguagem torna-se o campo do Outro, na medida em que este Outro, isto é, um Sujeito que se supõe no desejo que se produz neste campo, aí aparece.
Para se compreender o funcionamento da linguagem, deve-se considerar um princípio mínimo que o que se enuncia espera sempre sua significação de algum outro lugar, de um enunciado a mais, e até mesmo, da linguagem em seu todo. Como sabemos não há linguagem em seu todo, assim a significação de um enunciado está sempre suspensa a um alhures que não podendo ser a totalidade acabada da cadeia dos enunciados, é sempre uma cadeia incompleta que, por sua vez, suspende sua própria significação a um terceiro enunciado ainda, e por aí vai indefinidamente.
Na psicanálise lacaniana a definição de um significante nos diz que, um significante representa um Sujeito para outro significante, representado da seguinte forma S₁ → $ → S₂. Podemos avançar através deste enunciado acrescentando que, para além de uma divisão entre um enunciado e sua significação, a existência mesma de um enunciado, sua unidade morfológica de significante (S₁), independentemente de seu sentido, só se dá para um outro significante (S₂), por retroação deste último. Um enunciado só existe, se destaca como um (S₁) dentro de uma cadeia. Se na linguagem encontramos desejo, não se deve só e simplesmente porque todo enunciado e, consequentemente todo querer está separado de sua significação, mas porque um enunciado só é um materialmente com sua separação da cadeia indefinida que o faz existir.
O desejo, resumidamente, é o efeito da divisão operando na linguagem antes que um enunciador situável dote as palavras de uma presumida intenção. Para que se possa dizer que no enunciado de um fantasma isso deseja, é porque a existência deste enunciado é comandada pela sua separação da cadeia, que o faz existir, que lhe dá existência. 
Portanto, isso deseja na linguagem, e se isso deseja não é porque falta alguma coisa. Em verdade, se alguma coisa falta na linguagem é uma última palavra que trouxesse em si mesma sua própria significação e para a qual nenhum dizer a mais seria necessário para veiculá-la. O que falta é um último significante que existiria por si só, que conteria em si mesmo a necessidade lógica de sua existência.” (Calligaris, idem, pg. 24).
Mas, o que este desejo quer daquele que deseja? Se isso deseja, cabe perguntar: o que isso quer de mim? Na medida em que o mim é a marca de uma escolha de vivente, isso me diz a respeito. Teve-se de se escolher, isso, mais do que a mim, que não seria ninguém sem isso. A escolha forçada da alienação (isso me diz respeito) impõe uma conclusão: do “eu não sou nada sem isso” para “eu não sou nada por causa disso”, inaugurando o ato de sacrifício próprio do fantasma. Este raciocínio tira seu caráter paradoxal do fato de ser articulado na primeira pessoa, como se eu pudesse produzir pensamentos. E que ele só se anuncia a posteriori, quando se é possível desmontar o fantasma já constituído, quando o lugar de onde isso deseja já tomou o corpo de um Outro, de um outro que escolhemos para servir.
Cita-se como exemplo, os tormentos de uma pessoa religiosa que considera a criatura como uma mancha para a perfeição do criador, que pode não passar de um leve deslizamento, se considerarmos que Deus pode ser um nome de um corpo que atribuímos ao lugar onde isso deseja. A alternativa que decorre do encadeamento que leva até ao “isso quer minha perda” é a do tudo ou nada. Sendo que, a criatura só existe por Deus, o que a deixa na total ignorância do mistério do querer Dele. Não tendo claro os desejos de Deus, sendo ela uma criatura, de que forma pode apagar a mancha que ela mesma constitui na perfeição do criador? Esta tarefa propõe duas alternativas: apagar a si mesmo ou transformar a mancha em uma missão para a criatura e assim preencher o desejo divino por suas obras, sem repouso, pois quem sabe o que quer este desejo?
O sujeito confrontado ao indeterminado do desejo na linguagem concebe a alternativa de apagar-se na esperança de abolir o desejo, ou novamente, determiná-lo imaginariamente para tentar preenchê-lo como a falta de um corpo. De acordo com Calligaris (1996, pg. 28), “atribui-se ao desejo um Sujeito Outro, a este Sujeito um corpo, e escolhendo este corpo uma falta, figura imaginária do desejo ao qual ele pode enfim fazer a oferenda de seu próprio corpo, na esperança de talvez preenchê-lo ao apagá-lo”.
Calligaris (1996) propõe a seguinte leitura para a fórmula do fantasma: $ ◊ a, ao Outro como desejante, ou melhor, como Sujeito atribuído ao desejo ($), cada um oferece-se como objeto (a), o símbolo ◊, destacado por Lacan como punção, marca a impossível colagem dos heterogêneos . Resolver a heterogeneidade entre um desejo indeterminado, efeito da divisão na linguagem e um corpo, não é outra coisa senão a função imaginária da castração. Esta escritura fixa o momento em que um significante faria do desejo no Outro o fato de um sujeito Outro, antes que este tome corpo, assim o objeto em oferta não se determina. O objeto é “alguma coisa”, um nada. Lacan inclui no seu catálogo de objetos parciais o nada que equivoca, pela etimologia, com alguma coisa. Não se trata de um objeto parcial como os outros, mas a posição do objeto ofertado ao desejo do Outro antes de qualquer determinação deste objeto e deste desejo, tal como uma falta imaginária sobre um corpo poderia representá-la. A castração imaginária funciona como um enunciado que preenche o papel duplo de produzir o Outro como Sujeito desejante, e de provê-lo de um corpo.
Freud já destacava nas últimas linhas de Análise Finita e Infinita um ponto instransponível pela análise, da castração. Quando um paciente fala sobre os pais, não deve apressar-se em concluir que é em relação à realidade de seus próximos que ele se situa. Este equívoco pressupõe que o Outro é o ajuntamento de alguns outros, e com isto priva-se de toda a chance de encontrar o corpo de cujo gozo é servidor. Pois para cada um deve-se procurá-lo alhures que no corpo de seus semelhantes. Encontrá-lo é fazer desde já ressoar a frase do fantasma, sendo ela o efeito ao mesmo tempo em que lhe dá figura.
É em relação a este corpo que se estabelece o catálogo dos objetos parciais de que ele pode ser imaginado amputado. Reconhecendo como objetos possíveis a voz, o olhar, seio, fezes e algumas vezes a urina, ou seja objetos destacáveis do corpo, assim como o estádio do espelho estabelece os limites. Já se quis acrescentar o suor, a respiração e também o sêmen, pois trata-se de objetos que obedecem ao mesmo critério. O corpo é escolhido como imagem de uma falta que um objeto pode preencher, mais precisamente de uma falta para gozar, sendo necessário que ele se preste para ilustrar o gozo malogrado.
Geralmente, é objeto a no fantasma todo objeto através da qual em face ao desejo do Outro o nada de ser do sujeito se determina, colando-se na figura imaginária desse desejo como falta ou amputação de um corpo que não é obrigatoriamente especular.
Na fórmula do fantasma ($ ◊ a), o losango poderia ser lido como equivalente da função imaginária da castração, ou seja, à operação que dá determinação e corpo ao desejo do Outro, permitindo a colagem com um objeto a determinado. Àquilo a que chamamos de fantasma, se formula segundo esta escritura, segundo a vontade de unir o objeto que somos ao corpo do Outro a quem ele falta, do Outro que um enunciado tornou sujeito, um enunciado onde aquele não se diz na primeira pessoa, um enunciado sem-eu. É nisto que o enunciado do fantasma será o verdadeiro operador da castração imaginária, não somente produz o Outro como Sujeito, mas também coloca a possibilidade de um saber sobre seu desejo, sendo a falta modelada segundo este suposto saber possível modela o corpo do Outro.
Sem deixar de considerar que a demanda pela linguagem que se alimenta de um corpo e de uma falta neste corpo responde a uma ordem que é a o do Nome-do-Pai, ou seja, esta demanda não ocorre sem a ajuda do que tomará um aspecto de interdição, interdição de se reunir novamente ao corpo no qual esta demanda se origina, separação instaurada pelo “não” da função paterna frente ao desejo materno. Desta forma, Calligaris (1996) permite articular a fórmula do fantasma de outra maneira: $ ◊ D. Onde indica que a função do Nome-do-Pai permite ao neurótico consistir em significante, como Sujeito ($), face à demanda do Outro (D), sendo esta demanda do Outro, a falta em um corpo.
O motivo pelo qual o fantasma não se enunciar na primeira pessoa, deve-se ao fato de que este evacua o objeto ao qual o ser do sujeito se reduziu, assim como o corpo ao qual ele se ofereceu. Sua narrativa assegura o neurótico quanto à sua consistência significante face à demanda do Outro. Em psicanálise, considerar o fantasma no sentido do discurso comum é ater-se aos limites da gramática de um roteiro que mantém o fantasma, da mesma forma que o é. Cada roteiro aparece como o atamento primeiro do objeto e do Outro. É este nó, escritura fundamental de todo o roteiro, que merece ser chamado de fantasma, ele manifesta o esforço sistemático para não se dar seguimento ao fato de que o gozo do Outro é impossível, esforço que toma a forma de uma oferenda de si mesmo como objeto ao corpo imaginário do Outro, ou para ser mais direto, à falta deste corpo. Podemos enfim constatar que, o fantasma é a relação fundamental de um ser falante com seu Outro, com a linguagem.

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