sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Extraindo a pedra da loucura






"Aqui dentro não existem loucos, existem pessoas que não aguentaram a loucura do mundo aí fora."






A indicação do Bruno (que pode ser encontrado aqui. O Bruno e não a indicação) sobre o programa A Liga, exibido no dia 03 de agosto de 2010, sobre Saúde Mental fez pensar em alguns trajetos que passei no campo das psicoses.

Durante a graduação em psicologia, participava desde o 3º ano de um curso sobre Psicoses. Neste curso que possuía um enfoque psicanalítico, envolvia também as unidades de atendimento da universidade, assim havia a possibilidade de acompanhar um atendimento de um paciente psicótico. Se houvesse a inscrição de algum, claro.

Bom, desse grupo acabei atendendo uma paciente durante 4 anos que apresentava alguns delírios, porém sem um histórico de crise, ou seja, a paciente nunca passou por algum tipo de atendimento em que houvesse a necessidade de medicação. Claro que por questões éticas não vou dispor de mais detalhes do caso, contudo vou me orientar apenas pelo programa A Liga e algumas possíveis reflexões.

Logo no início do programa uma das entrevistadoras fala sobre a dificuldade em ouvir os relatos, não distinguindo o que é realidade e o que é fantasia. De certa forma, os delírios também são uma forma de realidade. O grande problema dos psicóticos é viver em um mundo neurótico. Com uma lógica de funcionamento diferente daquele em que se está inserido, tudo o que escapa do "normal" é tido como anormal, não precisamos ir longe para ligar o conceito de anormal com a loucura. Enquanto que para a neurose existe um e se, na psicose isso deixa de ser empecilho, assim as cadeias de significantes estão mais livres para fazerem associações que um neurótico torceria o nariz. Por exemplo, uma das residentes de uma casa terapêutica diz que ela não é a Izildinha, ela é a Sharon Stone, do Batman e Robin que roubaram o berço para fazer coisa errada, esse discurso é tomado pela apresentadora como uma brincadeira. Talvez seja, talvez não. Para levar essa apresentação como uma fantasia temos que considerar o e se, e se ela não for a Izildinha, também não deve ser a Sharon Stone como diz ser, afinal é bem diferente do que se vê nos filmes. Para a Izildinha (ou a Sharon Stone) a possibilidade de que ela é realmente quem diz ser deve ser levado em consideração. Não no sentido do que isto possa afetar a Sharon Stone, mas sim de que este é um discurso que pode apresentar uma realidade para alguém. No pouco tempo em que pôde falar quem era, uma história passou a surgir sobre a identificação com uma personalidade famosa tida como símbolo sexual, envolvendo um justiçeiro, um objeto que indica recém-nascidos, e a expressão de que há um erro nessa história toda, muitas interpretações tornam-se possíveis, mas daí entra o questionamento da ordem da neurose, checando a veracidade do discurso. Jura? é a frase dita pela apresentadora. Ora, quantas mulheres não desejaram um dia ser a Sharon Stone, ou outra sex symbol? Fantasiaram-se com esta ideia, se vestiram iguais, foram pra rua se achando, cruzaram as pernas da mesma forma, fantasiaram serem possuídas por um "justiçeiro", ter um filho... porém e se ela não for a Sharon Stone? Só resta voltar a ser quem ela acha que é, ou seja, aquilo que pode ser compartilhado de sua verdade com outros. Trabalha como x, ganha y, casou-se com z. Precisamos conferir com a verdade aquilo que somos, já o psicótico é mais livre para voar, nesse sentido, para ele, é. Na medida em que sua história pode ser dita, passa a existir, é a verdade daquele quem diz, sua realidade. E Freud não falou na existência de duas realidades, uma realidade de fato e uma realidade psíquica, importando muito mais a segunda do que a primeira? Experimentamos algo parecido com os delírios nos sonhos, ou até mesmo nos devaneios, mas daí perguntamos "Jura?" e tudo cai por terra, foi só um sonho.

Num outro momento do programa uma paciente explica sua bipolaridade como um pólo químico que vai puxando para um lado magnético do corpo, isso me lembrou do filme Estamira e do livro Memórias de um doente dos nervos, de Schreber (livro analisado por Freud sobre as psicoses). Para o psicótico basta esta explicação sobre o que ele é, uma das frase da Estamira é: 

"Eu sou Estamira, eu sou a beira, eu tô lá, eu tô cá, eu tô em tudo quanto é lugar, e todos dependem de mim, todos dependem de esta mira.". 

Perfeito! Mas no mundo das neuroses a bipolaridade é um transtorno de humor, caracterizado por picos de mania e depressão confirmado por um especialista, por alguém que sabe o que somos, mesmo sendo esta a primeira vez que este nos vê e, Estamira é só um nome próprio, sem poesias.

Levei um ano para conseguir ouvir minha paciente sem estes questionamentos sobre a verdade, típico da neurose. Respeitar o que ela estava falando e tomar aquilo que ouvia como uma verdade foi meu primeiro desafio. Após superar esta fase, os atendimentos passaram a progredir. Passei a compartilhar do delírio de minha paciente, isso não quer dizer que passei a apresentar alucinações também, mas sim de que agora podia ouví-la segundo o que tinha para dizer, respeitando seu discurso e conferindo certa autenticidade a este. Lacan quando atendia seus pacientes no Centre Hospitalier Sainte-Anne usava do mesmo recurso, suas seções com pacientes psicóticos eram feitas em conjunto com um grupo de pessoas que também compartilhavam do delírio. Isto conferia ao paciente uma certa organização de seus pensamentos, fazia com que seu discurso não fosse tomado como anormal, doente, louco. A convivência num mundo neurótico podia apresentar uma saída satisfatória. Numa visita que fiz ao Sainte-Anne, situado no 14e arrondissement de Paris, ouvimos o relato de que o bairro tinha uma convivência diferente com os pacientes. Por ter muitos psicóticos nas ruas, devido aos atendimentos no hospital, as pessoas das ruas, das lojas, estendiam as conversas com os desprovidos da razão, os atendiam como freguêses assim como qualquer outro, isso quebra e muito o preconceito que temos sobre a psicose. Tomamos como "O Louco", que pode fazer tudo e mais pouco a qualquer momento, sem mais nem menos, vide apresentadora antes de ir dormir no hospital. Isso também pode ser observado pela apresentadora que precisa "tomar um ar", ou seja, precisa sair daqueles discursos sem sentidos, soltos no ar, misturados a olhares estranhos, e gritos horrendos. Precisa se certificar de que a loucura que vê é de outros, não é dela, o mundo lá fora ainda continua o mesmo. Ameaça passada, notem que é a mesma apresentadora que se questiona sobre qual é o limite entre "nós que não temos transtornos" daqueles que "os tem", quando ouve falar sobre ouvir vozes e assombrações, questiona que muitos dos sem-transtornos apresentam certas crenças sobre premonições e espíritos. Mas, qual é a diferença?

Lacan entendia a psicose como um funcionamento, uma estrutura psíquica, um jeito de ser, assim como se pode ser histérico, ou obsessivo, ou narcísico também se pode ser psicótico. Durante uma entrevista uma paciente diz ter sido casada durante 5 anos, tem dois filhos, é avó, isso tudo é possível, assim como é possível ao psicótico ir ao supermercado, trabalhar, e claro, casar e criar filhos. Uma estrutura psicótica é algo bem diferente de uma crise, durante uma crise psicótica o sujeito pode ser agressivo, cometer atos dos quais pode se arrepender depois, ou não. Porém fora da crise o que fica são seus discursos "estranhos". A possibilidade de viver de um psicótico deveria ser entendida assim como para qualquer outro sujeito, independente de sua estrutura, de seu jeito de ser no mundo.

As medidas de reinserção, ou como são chamadas, de adaptação, muitas vezes são feitas dentro do ambulatório, ou hospital, sem falar que vivemos numa era em que uma pílula pode resolver qualquer problema, qualquer problema mesmo! Ao assistirem o filme Estamira, notem a diferença de quando está medicada e quando não está, verão do que estou falando. Claro que muitas medidas terapêuticas são válidas, desde que não funcionem como descritas por um paciente: como uma ocupação para não pensar besteiras. Pois em medidas de internamento esses tempos ociosos podem fazer com que se pense em fugas, tragam quadros depressivos, menos pensar em como constituir uma vida social fora das paredes, quer seja dos antigos manicômios, residências terapêuticas, ou centros de atenção psicossocial (CAPS). Se na neurose prega-se a necessidade de um tempo ocioso reservado para si, porque na psicose esse sistema serve apenas ao mal?!

Muita coisa já foi realizada no que diz respeito às psicoses, como a luta antimanicomial para acabar com os regimes de internamentos, por exemplo, mas muita coisa ainda precisa ser feita. Talvez uma das mais importantes seja mudar a escuta, não só de dentro para fora, mas também de fora para dentro, de fora dos portões para dentro da realidade dos internamentos, assim podemos nos dispor a ouvir o que a psicose têm a dizer. Citando Herbert Vianna, "o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu..."

4 comentários:

  1. Bom saber que esta dica do prog. A LIGA rendeu um texto tão bom. Mais um ótimo texto. Abs

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  2. Depois desse texto eu não me sinto tão mal em viver mais dentro dos mundos criados na minha cabeça do que com o pé no chão...
    Texto simplesmente fantástico. Vai além do questionamento do Alienista, somos todos loucos, afinal, mas alguns de nós acham que têm algum tipo de acordo simbólico mais forte, ou seja, linguagem.
    Parabéns pelo texto Paulo!
    Abraços

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  3. Grato Renan! Não à toa teve um cara que deu tamanha importância a uma coisa que ele chamou de Realidade Psíquica. Ah! O nome do cara é Sigmund Freud.

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