segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Rio



"Ô, ô, ô, ô, ô, ariá, raiô
Obá, obá, obá
(Mas que nada - Jorge Ben Jor)



Quando assisti ao filme Rio, de Carlos Saldanha, havia na sala um grupo de crianças entre 7 e 12 anos. O que me chamou a atenção é que esta já era a enésima vez em que assistiam ao filme, porém fizeram o esforço de assistir mais uma vez.
Outro ponto que chamou a atenção foi o fato de que as crianças repetiam as falas do filme, entretanto, apenas a parte inicial do filme, para ser mais exato até a parte em que  Blu viaja até o Rio de Janeiro. Ou todas as vezes em que as crianças assistiram ao filme foi apenas a parte inicial, ou isso diz alguma coisa.
Para facilitar vou dividir o filme em três momentos: a vida do Blu em Minnesota; suas aventuras acorrentado com Jade no Rio e; a resolução do filme.
  • Quando Túlio (ornitólogo) se depara com Blu nos Estados Unidos, percebe uma coisa: Blu é domesticado demais e por isso não é capaz de voar. Sua relação com Linda (sua cuidadora) cumpre com aquilo que foi dito quando ela o achou numa caixa ainda filhote, ou seja, de que iria tomar conta dele. Este cuidar é algo muito próximo do que uma mãe pode fazer por seu filho, não é à toa que as crianças se identificaram tanto com Blu neste momento, pois revela suas relações familiares, independente da atual situação. Como estamos falando de desejos, o fato de reproduzir as falas do Blu no momento mais “domesticado” de sua vida, nos diz sobre a semelhança com que tentamos “domesticar”, ou se preferir podem usar o termo “educar”, nossas crianças. Claro que o termo educar pode ser empregado num sentido muito mais amplo e profundo, porém chamo a atenção para os meios educativos em que a maior parte das crianças vivenciam: modelo educacional familiar com os pais saindo cedo para trabalhar; modelo educacional escolar, em que além de todas as questões que envolvem a escola, podemos aumentar o novo termo bullying; modelo educacional livre, se me permitem o trocadilho, onde temos as informações oferecidas pelas diferentes mídias, amigos e outros grupos. Quando Blu vai tomar seu chocolate com biscoitos é caçoado por duas outras aves do lado de fora da loja, por ser um nerd filhinho da mamãe, como se isto negasse àquilo que ele realmente é. Se em algum momento da história aqueles que se dedicaram ao estudo não foram alvos de chacotas alheias, que se pronunciem, por favor. O descolado sempre foi o bagunceiro, a turma do fundão. Quando é questionado sobre voar, que seria algo da ordem do natural, Blu recorre aos meios humanos (livros, semelhança com o avião) para se ter sucesso. Seu fracasso em voar poderia ser superado numa série de tentativas e erros? Ou Blu estaria fadado a sempre fracassar por negar sua natureza? Falando sobre o infantil, como essas questões ficariam? Voar é a mesma metáfora em que usamos na frase “voar livremente”. Uma vez convencida sobre a função de seu pássaro como último macho da espécie em gerar descendentes, Linda decide levar Blu ao Rio para conhecer a também última fêmea da espécie. Ao chegar no Rio, Blu conhece dois pássaros com quem trocam uma rápida conversa, decidem tirá-lo da gaiola em que estava para conhecer a garota, mas Blu se nega a deixar o conforto do aprisionamento. Não é preciso ir atrás de comida, não é preciso voar, muitos confortos são oferecidos a um simples chamado, acompanhamos muitas das crianças confortáveis em seguir aquilo que são ordenadas a desempenhar, mas isto pode ser uma breve fase da vida, ou não... Não é à toa que esta primeira fase se passa no gelado inverno americano.
  • Quando Blu conhece Jade, podemos iniciar uma outra fase na história. Caso continuassem na mesma trajetória o filme terminaria com Blu e Jade transando para perpetuar a espécie, vemos que essa condição não garante um encontro. Porém o filme sofre significativas mudanças, o calor do Rio de Janeiro, em especial antecedendo o carnaval; o aumento da gaiola, que antes era uma pequena loja de livros, agora é uma tentativa de reprodução de seu habitat natural, a floresta e as ruas (e becos) do Rio. Mais uma vez Blu está preso, mas desta vez acorrentado à Jade. Ambos têm algo a ensinar a partir daquilo que faz parte de suas vivências e experiências de vida. Mas algo os impede de um relacionamento, novamente a metáfora do “voar livremente” se faz valer. Mesmo que Jade possa voar, acorrentada a Blu, não tem forças suficiente para voar pelos dois.  Ao experimentar a sensação de voar (de carona em uma asa-delta), Blu arrisca uma outra tentativa, novamente sua prisão o restringe. Acorrentados só podem ver-se por um único ponto de vista, ou seja, o da corrente. Nessa parte as crianças que assistiam ao filme se calaram. Estariam elas ainda presas à situação anterior de Blu ou, presas a um outro cuidador e provedor de suas necessidades? Desconhecendo a aventura de Blu em terras estranhas, só podem acompanhar e torcer para que haja um final feliz. Qual seria a corrente que nos prende e nos impede de voar?! A solução para este enigma não é tão simples assim, nem mesmo Sófocles deixou barato para Édipo que solucionou o enigma da Esfinge. Corremos o risco de uma vez livres ainda não sabermos voar, ou a partir deste momento cada um deverá seguir seu próprio caminho... Livre de prisões ainda não garante o voar.
  • No filme, o momento crucial da história que vai garantir seu desfecho se dá assim que a corrente que prendia Blu e Jade é solta. Ambos reconhecem que suas diferenças os impossibilitavam de terem um outro tipo de relacionamento. Da mesma forma, se sentem as pessoas que deixaram um emprego de muitos anos, ou um casamento. É preciso reconhecer o desejo, ou melhor, reconhecer-se como sujeito desejante. Aquilo que nos acorrenta, nos dita o que devemos desejar, assume-se, invariavelmente, como nossa própria voz. Estamos cheios de exemplos na vida moderna de possíveis correntes para nossos desejos, basta apertar um botão, ir às compras, submeter-se ao desejo do outro. Não estou levantando a hipótese de que tudo isso seja ruim. Não estou aqui para qualificar os desejos. Mas, voltando ao filme, Rio segue a máxima hollywoodiana, ou seja, apresenta um final feliz. Torna-se possível “o” encontro entre Blu e Jade. Bom, há quem diga que Blu continua preso...

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